Confinamento de um mês? ‘Não vai chegar’. Há 200 vezes mais casos ativos do que em março

Na próxima semana, os cuidados intensivos podem passar os 700 doentes com covid-19. Internados podem subir para 6 mil. Especialistas temem que planalto de casos reportados seja artificial e se deva a limites na capacidade de testagem. Com milhares de inquéritos epidemiológicos pendentes, a região de Lisboa já está a ter o apoio de 200…

Confinamento de um mês? ‘Não vai chegar’. Há 200 vezes mais casos ativos do que em março

«Estamos a andar mais às escuras. Não conseguimos perceber a que  velocidade está a andar a epidemia». O alerta é do epidemiologista Manuel Carmo Gomes, que assume preocupação com a evolução. Nos últimos dias houve uma estabilização de casos diagnosticados diariamente num planalto entre 10 mil e 11 infeções mas o docente da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, que esta semana apresentou projeções na reunião no Infarmed sobre a evolução da epidemia e defendeu medidas mais restritivas, sublinha que se vão somando os indícios de que esta aparente desaceleração pode ser ‘artificial’ e estar a ser causada por limites na capacidade de deteção de novos casos. Isto porque, depois da quebra no Natal, os testes aumentaram mas têm estado estáveis abaixo dos 60 mil/ dia, com aumento da percentagem de positivos, como explicou ao i Carlos Antunes, também da FCUL. E os internamentos continuam a acelerar.

Carmo Gomes, que no Infarmed defendeu que mesmo confinando dificilmente se evitaria chegar aos 700 doentes em UCI, admite que esse patamar poderá ser ultrapassado já na próxima semana. Mas a principal preocupação é não se conseguir fazer projeções como noutros momentos da epidemia sobre o pico de infeções, e consequentemente o pico de internamentos – e até onde pode ter de expandir a capacidade de resposta no país. «Se houvesse uma desaceleração dos casos, a taxa de internamentos também devia desacelerar e não é isso que vemos», sublinha o investigador, defendendo maior testagem. Na reunião no Infarmed, o professor da FCUL e consultor da DGS, apresentou as projeções feitas sobre o impacto de um confinamento no esmagar da curva, estimando que levaria sete a oito semanas a regressar a um patamar de contágio na casa dos 3500 casos diários, como antes do período do Natal. Agora admite ao Nascer do Sol que não é possível fazer esse cálculo – o confinamento não é comparável e os dados sobre os casos parecem estar mais desfasados da realidade.

O confinamento foi decretado por 15 dias, com a indicação de que será de um mês, e o primeiro-ministro deixou a expectativa de se poder aligeirar medidas na segunda quinzena. Já o Presidente da República disse esta sexta-feira esperar que não ultrapasse um mês de confinamento. Manuel Carmo Gomes, porém, tem a convicção de que um mês «não vai chegar», tendo em conta que os casos ativos são muito mais hoje do que eram em março e por isso mais difícil de controlar por via dos rastreios. «As medidas tomadas não foram fortes o suficiente e vão ter de ser. Estamos a adiar».

As próximas semanas serão as mais difíceis da epidemia, com os internamentos a continuarem a aumentar, bem como os óbitos, antecipa. «Precisávamos de ganhar tempo, algumas semanas, porque não temos as vacinas para já vacinar já todos os grupos de risco. Se conseguíssemos vacinar as pessoas nos lares, teríamos logo um enorme impacto nas hospitalizações, mas são quatro, cinco, seis semanas preciosas que precisávamos para ter as vacinas e que não temos. Vão ser semanas muito duras, as mais duras de sempre».

Há 200 vezes mais casos ativos do que em março

O confinamento é menos restritivo do que foi em março, com as escolas abertas, e a epidemia está mais espalhada, sabendo-se que nunca se detetam todos os casos desde logo porque há pessoas assintomáticas. Ainda assim, a ordem de grandeza da curva a esmagar nas próximas semanas, com mais 2,5 milhões de pessoas a circular diariamente do que havia na altura, não se compara.

Quando o país confinou pela primeira vez em março havia 600 casos ativos conhecidos. No final da primeira vaga o inquérito nacional serológico feito ao longo de junho permitiu estimar que tinha havido seis vezes mais infeções do que as diagnosticadas naqueles meses com base nos anticorpos desenvolvidos  numa amostra representativa da população. Estimou-se então que 300 mil portugueses tinham tido covid-19 ao longo daqueles meses – quando o país começou a desconfinar, a 4 de maio, tinham sido diagnosticados no país 25 524 casos de covid-19 a que seguiu o aumento de casos, sobretudo na região de Lisboa. No final de junho, tinham sido diagnosticadas 42 171 infeções no país. Esta sexta-feira havia 125 861 casos de covid-19 ativos no país e desde o início de janeiro foram feitos 107 mil diagnósticos. Mais os que não serão conhecidos, entre pessoas assintomáticas e por diagnosticar, vê-se a diferença na disseminação da doença. O diferencial será agora menor, porque o país testa mais do que em março, mas se houver três vezes mais casos do que os que são detetados, o factor sugerido pelo epidemiologista Henrique Barros na reunião no Infarmed, a partir de um estudo feito com trabalhadores da Universidade do Porto, é possível pensar que houve neste período de duas semanas 300 mil casos ativos, 200 mil que não sabem e que podem continuar a circular. E iniciar cadeias de transmissão.

Milhares de inquéritos pendentes. 200 militares dão apoio

A região de Lisboa tem registado o maior número de novos casos, uma média 3325 casos por dia nos últimos sete dias. Na segunda vaga não tinha ido além dos 1500. Há milhares de inquéritos epidemiológicos atrasados. Questionada pelo Nascer do Sol, a ARS não indicou quantos inquéritos estão pendentes. Garante no entanto que as equipas estão a ser reforçadas para realizar o maior número de inquéritos possível e que atualmente já estão a colaborar com o departamento de saúde pública 200 militares, mais de 100 médicos internos e cerca de 80 profissionais cedidos por municípios (técnicos superiores, assistentes técnicos, técnicos de serviço social, psicólogos, nutricionistas). Em novembro as Forças Armadas também deram apoio na recuperação dos inquéritos no Norte, quando na altura a epidemia ficou descontrolada na zona do Vale do Sousa e Baixo Tâmega.

Hospitais com pressão inédita – a caminho dos 6 mil doentes internados

Mantendo-se a taxa de aumento dos internamentos nos últimos sete dias, uma subida de 36% mesmo com as instituições de saúde a registarem números elevados de óbitos diários, dentro de uma semana deverá passar-se os 6 mil doentes internados nos hospitais com covid-19, e 700 doentes em cuidados intensivos. Isto se não houver uma aceleração ou uma maior desaceleração – esta semana era esperada pelo menos o início de alguma desaceleração nos contágios, dado que mesmo antes do confinamento houve vários alertas sobre o momento de risco atual. Se a taxa de internamento voltar a duplicar como aconteceu esta semana em relação à anterior, o que seria sinal de um agravamento ainda maior da epidemia, os internamentos disparariam mais de 60% e podiam chegar já esta semana aos 9 mil, no caso das UCI, com um aumento de 30% e atingindo-se os 800 doentes internados. Norte-se que mesmo que estes números não sejam alcançados na próxima semana, a projeção é de que serão na seguinte, isto não se começando a registar uma travagem muito mais acentuada do que até aqui nas admissões nos hospitais. Portugal tinha até à semana passada 1160 camas de UCI, com o Colégio de Medicina Intensiva da Ordem dos Médicos a apontar para uma possibilidade de expansão de 120 camas.

Em Lisboa,  a região mais pressionada, a ARS garante que estão ser feitas diligências para abrir o hospital de campanha do estádio universitário, que será reservado a pessoas com sintomatologia ligeira. A mobilização de recursos humanos tem sido a principal dificuldade.

Há também agora acordos para transferência de doentes com covid-19 para CUF Tejo, Hospital da Luz, Hospital das Forças Armadas e Centro de Apoio Militar (CAM/Belém). Até dia 12 foram transferidos 523 doentes para estes hospitais, revelou ao Nascer do SOL a ARS.