Ana Raimundo: “Estamos a diagnosticar cancros em estado mais avançado”

A Sociedade Portuguesa de Oncologia lançou esta semana a campanha ‘O Cancro não Espera em Casa’. A médica oncologista e presidente da Sociedade Portuguesa de Oncologia Ana Raimundo alerta que os atrasos nos diagnósticos já são visíveis em todo o país e vão aumentar a mortalidade por doença oncológica. Estima pelo menos mil cancros por…

 

Entramos num novo confinamento e, depois de um ano com a atividade no SNS perturbada pela pandemia, vai haver mais semanas ou mesmo meses de limitações no acesso a cuidados de saúde. Existe a esta altura uma ideia de quantos diagnósticos de cancro podem estar por fazer no país?

Provavelmente, mais de mil, fruto dos rastreios que estiveram parados e depois recomeçaram a meio-gás e que, no fundo, nos permitem um diagnóstico mais precoce, mas também de haver menos acesso aos cuidados de saúde primários. Em Portugal, por ano, são diagnosticados mais de 50 mil novos cancros.

Quando diz mais de mil é uma estimativa conservadora?

Sim. É verdade que houve uma recuperação no final do ano na atividade, mas agora vamos voltar a baixar atividade. O que os serviços de oncologia nos hospitais foram notando é que, mesmo mantendo-se a funcionar, houve uma diminuição do número de primeiras consultas, de novos doentes referenciados para os hospitais. Os centros de saúde reduziram a atividade, referenciam menos doentes. Por outro lado, os doentes, também pelo medo, não se dirigiram tanto ao seu médico de família, a uma urgência, e houve uma redução de atividade também por isso. Números fechados não existem ainda, mas é por isso que lançámos esta campanha (‘O Cancro não Espera em Casa’). É lançada numa fase complicada, com um novo confinamento, em que sabemos que o SNS está com grandes dificuldades em responder à covid e aos outros doentes, mas não podemos deixar de alertar as pessoas que existem outras doenças, não deixaram de existir. E também matam.

Nos últimos meses viu casos desses, em que as pessoas pensaram que podiam esperar ou não conseguiram ter acesso a consultas ou exames e que levaram a um prognóstico pior mais tarde?

Sim, eu e serviços de oncologia por todo o país. O que se tem verificado é que têm chegado doentes com cancros mais avançados. Porque as pessoas estiveram à espera a ver se passava ou com medo, por causa da diminuição da resposta do SNS e, em particular, dos centros de saúde porque, como se sabe, muitos médicos de família estão a trabalhar na área covid e não conseguem fazer as consultas com as suas listas de doentes. Mas o que notamos é isso: têm, de facto, chegado às consultas cancros em fases mais avançadas.

Que situações são mais frequentes? Nódulos que as pessoas não vão mostrar?

Sim, por exemplo, um nódulo que a pessoa notou e ficou à espera antes de mostrar ao médico, quando tem de ser avaliado e estudado. Sangue nas fezes que esperaram a ver se passava e fizeram uma colonoscopia mais tarde. Uma dor persistente que se manteve. Emagrecimento progressivo, acentuado. Uma fadiga também acentuada e mantida. No fundo, coisas fora do esperado. Claro que todos podemos ter estes sintomas, mas devemos estar atentos quando são persistentes. E não ignorando que existem limitações na capacidade de resposta dos serviços de saúde, as pessoas que mantêm estes sintomas não devem desistir. O objetivo desta campanha é esse, termos todos noção de que existem limitações importantes na resposta dos serviços de saúde, mas dizer às pessoas: não desistam, o cancro não espera em casa. Se não conseguirem à primeira, devem continuar a tentar ter a sua consulta e a sua avaliação médica.

Mas estamos nesse ponto? As pessoas terem de insistir para conseguem entrar no sistema?

O que sabemos é que há doentes que dizem que nem por telefone conseguem entrar em contacto com o seu centro de saúde. Se for necessário, vão a uma urgência. Os circuitos estão hoje preparados. As pessoas não devem desistir, devem ter a perceção de que o atraso num diagnóstico no caso da doença oncológica pode levar a que a doença seja detetada num estadio mais avançado, mais disseminada, metastatizada, e depois a probabilidade de cura é mais baixa. São efeitos que não se veem já, mas daqui a três, quatro, cinco anos vamos notar um aumento das taxas de mortalidade por cancro face aos anos anteriores.

Em Inglaterra saíram estudos sobre quantas mortes adicionais por cancro poderia haver ao longo do deste ano: 8 mil a 17 mil. Em Portugal existem estimativas?

Para já, ainda não temos, mas penso que através do Registo Oncológico Nacional (RON) começaremos a ter.

Neste momento, o RON ainda não tem dados?

O registo tem um atraso na entrada de dados que é de um ano, e já foi mais, por isso temos estado a melhorar. Penso que, ao longo do ano, já teremos alguns dados, não ainda taxas de mortalidade, mas uma ideia sobre o peso dos diagnósticos em fases mais avançadas.

E uma ideia mais concreta da quebra de diagnósticos?

Sim, a comparação entre períodos homólogos.

O RON já não poderia ter feito essa análise, pelo menos, dos primeiros seis meses do ano?

A indicação que tenho é que, neste momento, já tem os dados todos e que isso irá ser divulgado ao longo deste ano.

 

Antes desta vossa campanha já houve também um alerta da Liga Portuguesa contra o Cancro de que foram ultrapassados todos os limites e que os doentes com cancro foram esquecidos. Tendo em conta esta perceção de que há diagnósticos atrasados, deveria ser o Ministério da Saúde a lançar esta campanha?

O Ministério da Saúde já tentou lançar a campanha para as pessoas irem aos serviços de saúde, não deixarem de ir às urgências, isto depois da quebra nos primeiros meses da pandemia. Não foi dirigida aos doentes com cancro, mas à população em geral. Agora não a fazem porque sabem que não há capacidade de resposta nos hospitais. Quando ouvimos que o número de camas de cuidados intensivos e o número de camas em internamento estão quase esgotados, isso significa que o sistema de saúde está a entrar em falência. Se é diagnosticado um cancro, a pessoa precisa de ser operada. Para ser operada precisa de um bloco cirúrgico, de uma equipa para operar e de uma cama para se deitar. Se isso não existir, faz-se o diagnóstico e depois não se tem capacidade de resposta. Chega-se a um limite em que é tudo mais difícil de gerir.

As cirurgias voltam agora a estar limitadas, não se sabe por quanto tempo. Como se pode evitar um maior impacto sobre os doentes e garantir que os casos mais urgentes são mesmo operados na janela de intervenção mais adequada?

Tem de se garantir que existem equipas médicas e de enfermagem e camas que fiquem reservadas para os casos urgentes, nomeadamente oncológicos, e de haver uma articulação entre os hospitais. Só com uma boa organização.

Ouvimos falar na capacidade disponível e que poderá ser necessária para a covid-19. Há uma ideia de quantos doentes com cancro têm de ser operados nos próximas meses e estão classificados como prioritários ou muito primários, ou seja, quantas camas são necessárias para operar casos de cancro que não podem esperar?

Não sei se esse levantamento está feito. Penso que, em termos de resposta, é possível usar as equipas dos IPO, mas em termos de organização e planeamento têm de ser as administrações regionais de saúde a articular. Até pode haver uma solução em que equipas de uns hospitais vão operar doentes noutros hospitais. Agora, tudo isto exige uma articulação e um planeamento grande e que, que eu saiba, não se fez. Sabendo que ia haver uma segunda vaga, era algo que podia ter sido feito nos meses de verão. Mas não, neste momento, não sei a nível nacional quantos doentes estão à espera ou mesmo quantos doentes não foram tratados e morreram.

Mas admite que haja casos desses?

Sabemos que houve um excesso de mortalidade no ano passado, mas não foi dito quais foram as causas, se foi por doenças cardiovasculares, se por cancro. O que me dizem os colegas do IPO é que hoje há listas de espera menores. Sabemos que há menos inscrições para operações, mas tudo isto tem de ser avaliado para se perceber como evoluíram as referenciações. Por isso, falar hoje de lista de espera é um bocadinho traiçoeiro. No fundo, estamos a lançar esta campanha para as pessoas não se esquecerem. Parece um contrassenso, porque sabemos que estamos a viver um período complicado, mas temos de o dizer. Não podemos esquecer, o cancro mata mais em Portugal do que a covid.

Nos últimos anos com dados já fechados, o cancro representou anualmente cerca de 30 mil mortes, um terço da mortalidade no país.

Sim, e isso tem de ser tido em conta.

Tem faltado essa visão mais integrada dos problemas de saúde no país?

Não é fácil gerir uma pandemia e uma situação nova como esta. O que acho é que na fase de acalmia não se tomaram as medidas necessárias para o inverno. Aí sim, é que acho que houve uma falha. Agora que estávamos a recuperar, porque mesmo setembro, outubro e novembro foram meses de recuperação, volta tudo para trás e não há nada planeado. Agora vemos que os outros países também estão com dificuldades, não é uma dificuldade só nossa. A questão é que quando não se planeia faz-se uma gestão ao momento, gerem-se prioridades. E a prioridade neste momento é a covid-19.

Não devia ser?

Tem de ser. Mas no meio disto não se deve esquecer o resto. Sobretudo porque sabemos que não vai haver dificuldades só em janeiro, estou convencida de que ainda as teremos até ao verão. O problema é que planear numa altura em que se está em estado de emergência, com alguns hospitais em estado de catástrofe, como ouvimos esta semana relatar, por exemplo, em Setúbal, não é fácil.

O ministério emitiu esta semana um despacho com orientações aos hospitais para limitarem atividade a cirurgias urgentes e muito prioritárias até ao fim de janeiro. No caso de doentes oncológicos há o risco de doentes prioritários acabarem por agravar o seu estado e virem a ser operados já como muito prioritários?

Os tempos estão definidos. Doentes muito prioritários têm indicação para serem operados em 45 dias, prioritários em 70. Tem de haver uma avaliação permanente e, sobretudo, o trabalho em rede e a articulação.

Tem experiência no setor público. Dirige o serviço de oncologia na CUF Infante Santo. Tem havido alguma celeuma entre público e privado. Nesta área, pensa que poderá haver colaboração nestes meses?

Tem de ser avaliado pelo ministério, mas creio que seria possível, tal como houve possibilidade de o setor privado ajudar na luta contra a covid-19.

Os doentes com cancro vão ser vacinados na segunda fase da campanha de vacinação. Concordou?

Sim, atendendo à limitação das vacinas e tendo em conta que o principal fator de risco é a patologia cardiovascular e respiratória. O cancro não foi tão associado a uma maior taxa de letalidade por covid-19, com exceção dos tumores hematológicos, doentes que fazem quimioterapias que causam grande depressão do sistema imunológico. Também parece haver indícios de risco acrescido nos doentes com cancro do pulmão. Estes são dois grupos dentro dos doentes oncológicos que parecem ter maior mortalidade. Nos restantes doentes, não parece estar tão associada ao cancro e aos tratamentos, mas mais a outros fatores de risco. Se doentes com cancro tiverem os fatores de risco mais prioritários serão vacinados antes. Mas considero que poderia haver um cuidado especial com doentes hematológicos, doentes com leucemias e transplantados.