Clássico. Um inferno dos diabos

Waldemar Mota, Acácio Mesquita, Artur de Sousa – os Diabos do Meio-Dia – deixaram cair a sua fúria sobre o Benfica nessa tarde de maio de 1933 (8-0).

Foi ao meio-dia de 3 de abril de 1932, num jogo a contar para o Campeonato de Portugal disputado no Campo do Bessa, freguesia de Ramalde. Uma endiabrada equipa do FC Porto recebeu os leirienses do Ginásio do Lis e trucidou o adversário por nada mais nada menos do que 18-0. Endiabrada é o adjetivo certo. Sobretudo por causa de Waldemar Mota, autor de sete golos, Artur de Sousa, o Pinga, que marcou quatro, e Acácio Mesquita, que assinou um hat-trick. Tudo por junto, 14 dos 18 golos. Chamaram-lhes os Três Diabos do Meio-Dia e o nome pegou. «Ao trabalho aturado, persistente, do treinador José Szabo, correspondiam os jogadores animosos, estusiásticos, com carinho à camisola que envergavam», assim os descrevia um cronista da época. «Waldemar Mota, Acácio Mesquita e Artur de Sousa (Pinga) – Os Três Diabos – estonteavam a assistência, desbaratavam defesas e eram o terror dos guarda-redes».

Nessa edição do Campeonato de Portugal, que o FC Porto ganhou, o ataque dos nortenhos foi predatório. Depois dos 18-0 ao Ginásio, numa só mão, avançou por aí fora até à final: Salgueiros (4-1 e 2-0), Marítimo (0-0 e 3-2); Benfica (2-1 e 3-0). O jogo decisivo, face ao Belenenses, no Campo do Arnado, em Coimbra, foi formidando, fechado com um empate a quatro golos. O desempate da ordem foi resolvido pelo FC_Porto – 2-1, golos de Pinga e Acácio Mesquita. Não restavam dúvidas sobre qual era a melhor equipa do futebol português.

Na época seguinte, os rapazes de José Szabo compareceram conscientes da sua qualidade de favoritos. Acabaria por ser uma prova desanimadora quando se viram afastados nas meias-finais pelo Sporting (1-1 e 0-0, com 1-3 no desempate). Mas, até lá, viveram um dos momentos mais extraordinários das sua história. Foi no dia 28 de maio de 1933, no Campo da Constituição, e o adversário, ou melhor, a vítima, deu pelo nome de Sport Lisboa e Benfica.

 

O turbilhão azul

O embate foi considerado de tamanha responsabilidade que foi arbitrado por um espanhol, Pedro Escartín, um dos mais célebres estudiosos das leis do jogo e que escrevia com frequência para os jornais portugueses na tentativa de elucidar os adeptos sobre pormenores mais complicados.

«A enchente é grande e a expetativa é enorme. A entrada do Benfica provoca palmas, e a do Porto uma verdadeira apoteose». Ninguém seria capaz de adivinhar o que estava para acontecer. Não era meio-dia. Eram 17h30. Mas Acácio Mesquita, Pinga e Waldemar Mota afiavam as pontas das botas. Tinham como companhia, no ataque, Carlos Nunes, outro daqueles avançados que não eram para brincadeiras. Na baliza dos encarnados, Pedro da Conceição fazia alguns gestos de descontração. O destino condenara-o a ser o mártir da tarde.

O início do jogo é fervilhante. Xavier e Vítor Silva têm bom entendimento na frente benfiquista e são apoiados por Eugénio Salvador, esse mesmo, Eugénio Salvador Marques da Silva, que mais tarde, após tirar o curso do Conservatório, se tornou um dos reis da comédia em Portugal. Só que, nesse dia, iria tomar parte numa tragédia. Uma tragédia encarnada, claro. Provocada por um verdadeiro turbilhão azul.

Durou pouco a entrada autoritária dos lisboetas. Siska ainda foi obrigado a uma defesa aparatosa a remate de Pedro Silva, mas não tardou que o meio-campo dos azuis-e-brancos dominasse os acontecimentos, graças ao esforço e à garra de Álvaro Pereira e Lopes Carneiro. José Szabo, o húngaro que resolvera colocar-se a si próprio em campo nesse clássico, traçava passes certeiros, aplicando a sua técnica requintada.

Aos sete minutos, ainda o equilíbrio de forças se mantinha, Waldemar Mota aproveitou um deslize de Gatinho e marcou o primeiro golo. «A ovação é indescritível!», acentua o plumitivo. E acrescenta: «Aos 15 minutos, o Porto é mais team e marca vantagem territorial e de classe, embora ligeira. O entusiasmo do público é enorme, quase não havendo claque de Lisboa. Os avançados do Porto jogam com extraordinária decisão».

 

Soltaram-se os Diabos

Aos 25 minutos, Pinga marca um canto com precisão de arquiteto. Na área benfiquista, Acácio Mesquita eleva-se, poderoso, insaciável, e desfere um golpe de cabeça fantástico: 2-0.

A equipa encarnada estremece como varas verdes. A sua defesa abre buracos insanáveis e torna-se completamente permeável. Não surpreende, portanto, o 3-0 em cima da meia hora, com Waldemar Mota a aproveitar o nervosismo de Pedro da Conceição, que largara uma bola que parecia segura. O resultado do primeiro tempo está feito. O melhor estava guardado para a segunda parte.

«O Benfica entra sem ar de vencido mas… vencido. E o jogo recomeça no mesmo entusiasmo do público nortenho e sem esperanças possíveis para os campeões de Lisboa. Pedro da Conceição tem, logo aos quatro minutos, uma defesa magistral que evita o quarto golo». Não tardaria muito, no entanto. Aos 57 minutos, Acácio Mesquita entra forte pela direita e oferece o golo a Lopes Carneiro. «Com invulgar potência, este desfere uma brasa às redes e a bola entra imparavelmente».

Estão agora decorridos 21 minutos desde o início da segunda parte. Já ninguém tem dúvidas de que a vitória portista será gorda como um peru do cabaz de Natal. Resta saber por quantos golos de diferença irão os do Porto encarar a segunda mão, nas Amoreiras. Acácio Mesquita, com um gesto de habilidade, desorienta Albino e Teixeira e chuta rasteiro para o 5-0.

O resultado já é pesado, doloroso. Mas os Diabos do Meio-Dia ainda têm vontade de atiçar as chamas do inferno. Faltam sete minutos para acabar o martírio do Benfica, cujos jogadores parecem ter sido condenados às caldeiras de Pêro Botelho. Desta vez é Carlos Nunes que, a passe de Lopes Carneiro, irrompe por entre aquela defesa de papel vegetal e faz o sexto golo. O público parece estar satisfeito. Ou talvez exausto por tantas e tão continuadas exibições de felicidade. Mas ainda há mais dois golos por marcar e Acácio Mesquita, um minuto mais tarde, e Waldemar Mota, de cabeça, aos 85, fecham o contador.

Os jogadores do Benfica estão de rastos, em contraste profundo com a pujança dos seus adversários. Tinham acabado de se libertar de um suplício profundo e tenebroso. O nosso cronista, que não era outro senão Tavares da Silva, jornalista do quilé que até chegou a ser selecionador nacional, arrematava a sua rubrica: «Os rapazes do Porto saem de campo em delirante apoteose, indescritível. Pelo relato feito, vê o leitor como o grande vencedor foi torcendo pouco a pouco o seu adversário, que se pode considerar eliminado do Campeonato. Teria de vencer na segunda mão por… 9-0». Não passou dos 4-2. E ficou pelo caminho…