O paraíso para cães e animais selvagens às portas da capital

Em Sintra, a veterinária Cristina Guerreiro dedica-se à reabilitação de 70 cães abandonados. Agora, recorrendo aos conhecimentos de Engenharia Florestal, sonha com a oficialização do Centro de Recuperação de Animais Selvagens. Pelo projeto, já passou um sacarrabos e são tratados sete ouriços. 

Há muito tempo que Cristina Guerreiro ajuda associações de resgate e acolhimento de animais. Formada em Engenharia Florestal pelo Instituto Superior de Agronomia, em Lisboa, dedicou-se à Medicina Veterinária há 15 anos, após ter concluído a formação na Universidade de Lugo, na Galiza.

«A minha grande paixão são as aves noturnas, como os mochos e as corujas, e os ouriços», explicou a profissional de 50 anos que, em 2019, avançou com a criação do Centro de Recuperação de Animais Selvagens de Sintra – CRASS – para «acolher, tratar e recuperar os animais selvagens feridos encontrados no concelho de Sintra e, sempre que possível, recolocá-los no seu habitat natural».

Deste modo, Cristina dedica-se a ajudar os ouriços-cacheiros, mamíferos insetívoros primitivos, nativos do continente europeu, a passarem o inverno com mais conforto. «Deviam estar a hibernar agora e, por isso, têm de ser mantidos em sítios quentes para não morrerem de hipotermia», explicitou, acrescentando que estes integram «a fauna portuguesa porque não fazem parte da espécie africana, o que significa que, por volta de abril ou maio, voltam à vida deles». 

Que futuro? 

Apesar de no site Naturdata, que se foca no estudo da biodiversidade em Portugal, o estatuto de preservação dos ouriços ser considerado «pouco preocupante segundo a União Internacional para a Conservação da Natureza», tendo em conta que «em Portugal Continental é considerada Pouco preocupante e não avaliado nos Açores», Cristina não se revê nesta caracterização dos pequenos ouriços. «Têm um peso médio de 700g, podendo variar entre 400g e cerca de 1200g. O corpo varia entre os 15 e os 30 cm de comprimento», diz, avançando que «estão presentes nos matos, em florestas, caducifólias, nas bordas de florestas e pradarias, pomares, vinhas, campos agrícolas, parques e jardins inclusive em zonas urbanas», o que leva a que o seu tamanho reduzido, associado à presença em diversos habitats, seja propício à existência de ameaças. «Infelizmente, estão em vias de extinção», afirmou.

Em primeiro lugar, a veterinária elucidou que «são frequentemente atropelados» e tal é comprovado através de dados relativos à monitorização da mortalidade da fauna nas estradas portuguesas, pois, em 2016, entre mais de 2400 animais – selvagens e domésticos – que foram vítimas de atropelamento, 83 eram ouriços-cacheiros. Por um lado, «a destruição de habitat e a utilização de pesticidas na agricultura são também fatores de ameaça» e, por outro, «o consumo de presas contaminadas por pesticidas leva a contaminação indireta dos ouriços, ainda que a espécie também possa ser contaminada diretamente».

Por outro lado, os «maiores predadores são os cães, as raposas, os texugos e as aves de rapina, como o bufo-real», embora Cristina também destaque os javalis. «Adicionalmente, a espécie é por vezes capturada ilegalmente» e até encarada como alimento. «Também são afetados por doenças e parasitas, como a salmonela e a carraça, respetivamente, mas são tão engraçados!», rematou.

Ouriço Maia e seus amigos 

«Tenho sete ouriços. Um está a hibernar, mas os outros são extremamente ativos», explicitou a cuidadora, não deixando de partilhar que «são animais muito sujos, que fazem as necessidades onde dormem» e, por isso, é necessário ter um nível de atenção redobrado aos seus movimentos. «O que eu faço é mudar as caminhas deles uma vez por dia e dou-lhes comida de gato. Quando estão mais em baixo, comem a raçãoRecovery da Royal Canin», adiantou Cristina, falando com especial carinho no ouriço Maia, batizado com este nome em honra da associação Amigos Picudos, que também leva a cabo esta missão, na Cidade da Maia, no Porto. «No caso do mais pequenino, ponho-lhe uma botija de água quente, três vezes ao dia, porque estava a entrar em hipotermia», disse. 

O papel da autarquia 

Aguardando a oficialização do processo junto da respetiva autarquia, a veterinária almeja o dia em que o CRASS de Sintra sairá do papel e constitua, a cem por cento, um lugar em que os animais selvagens possam viver em tranquilidade. «O projeto já está presente no Facebook porque precisamos de mostrar aos vereador que os portugueses consideram esta iniciativa uma boa ideia. Necessitamos dos gostos, dos comentários, de todas as reações possíveis», apelou Cristina, esclarecendo que já conta com o aval do Canil Municipal de Sintra e, agora, ambiciona que o vereador Eduardo Quinta Nova se reúna consigo. «Parece-me uma pessoa sensível à causa animal. Espero que nos oiça e colabore connosco», referiu.     

«Com o dinheiro dos outros, não se brinca» e, por isso, Cristina investe dinheiro no seu terreno – que integra o Parque Natural de Sintra-Cascais -, não aceita donativos monetários – «peço aos voluntários e a quem nos queira ajudar que compre ração, mantinhas, algo de que precisamos sempre» e mantém em mente que o seu CRASS terá capacidade para 20 a 25 animais e nunca mais do que este número. «Apenas peço à autarquia que considere o meu projeto de utilidade municipal. Não vou acumular animais. É claro que alguns poderão ser residentes por terem problemas de saúde, mas o objetivo primordial é ajudá-los e recolocá-los na natureza», declarou, lembrando que, para além dos ouriços, já acolheu um sacarrabos que fora encontrado por dois dos seus voluntários. «Tinha só um bocadinho do queixo esfolado, foi devolvido ao habitat natural», disse, salientando, com tristeza, que «muitos dos animais selvagens não têm onde ficar e, assim, o desenvolvimento deste CRASS é de extrema importância».

Sem o ok da câmara municipal, Cristina limita-se a avançar com os meios aos quais pode recorrer. Não tenho o espaço físico pronto, limito-me a receber a quantidade de animais que consigo. Preciso de construir a outra metade da quinta para receber estes animais», disse, realçando que, na página oficial de Facebook do CRASS, partilha fotografias de outros animais, como peneireiros ou corujas, para aumentar a literacia das pessoas e captar a atenção das mesmas para a preservação destas espécies. «É uma paixão minha e faço aquilo que está ao meu alcance enquanto o CRASSnão se encontra totalmente operacional», mencionou.  

Os Snoopy’s 

«Tenho caixas de captura de cães e gatos. No início, desempenhei várias tarefas, como a das esterilizações», explicou a profissional que, há cerca de sete anos, antes de dar o passo em frente para cuidar dos animais selvagens, criou a Snoopy’s para adoção, um «grupo de amigos apaixonados por cães que se juntou para tentar ajudar a minimizar o flagelo do abandono e dos maus tratos aos mesmos», sendo que este constitui «um trabalho que passa pela mudança de mentalidades, nomeadamente, no que diz respeito à importância da esterilização». Na ótica de Cristina, o trabalho que faz, juntamente com os voluntários, «passa essencialmente pela esterilização, vacinação e reabilitação física e comportamental dos animais», não devendo ser deixados de parte «os passeios semanais com os miúdos a quem chamamos carinhosamente de Snoopy’s, com o intuito de os sociabilizar e habituar a andar à trela de forma a que a sua adoção seja facilitada».

Como fã da personagem criada por Charles M. Schulz, para a banda desenhada Peanuts, é apologista de que para cada cão existe uma família e vice-versa. «Os cães passam de dois a três meses connosco. Damos um cão para ir fazer cãopanhia a outros ou a adoção é feita aos pares, porque não queremos que sejam filhos únicos, digamos assim», explicou, até porque, na sua perspetiva, interessa que os canídeos «vão sempre para melhor». Já acolheu 140 cães, há três anos, porém, agora, trata de 70. «Vivem na quinta, estão em liberdade, usufruem dos cercados e socializam em matilhas», admitiu com orgulho, não esquecendo o reverso da medalha. «O nosso contrato é que, quando as coisas correm mal, os cães voltam para nós. Os adotantes têm de ser da zona de Sintra ou arredores porque desloco-me a casa das pessoas. E não consigo ir a todo o país. Peço que exista espaço para que os bichinhos se desloquem livremente e que os donos tenham tempo para amá-los», admitiu, realçando que, no início da pandemia, as adoções dispararam porque as pessoas estavam em casa, contudo, esta realidade alterou-se. 

«Dois cães foram adotados em maio de 2020 e devolvidos em novembro porque as pessoas decidiram que vão emigrar para a Suíça e não consigo prever estas alterações», confessou, adiantando que «a outra situação prendeu-se com dois cães adotados em julho e que voltaram à Snoopy’s em dezembro porque os donos começaram a trabalhar muito e os animais chegavam a estar 13 horas sozinhos em casa». Para Cristina, estes acontecimentos decorrem porque muitos dos adotantes «não medem o futuro» e «desprendem-se dos animais porque há muitas associações que os entregam facilmente e as famílias devolvem-nos com a mesma facilidade». 

A veterinária acredita que «os maus tratos a animais aumentaram, principalmente, aos mais velhos», não necessariamente desde março, «mas sim há uns anos». Esta tendência verifica-se através de situações como o assassinato de cães «mais velhos e/ou doentes». Por outro lado, importa referir que, durante o período festivo, a Snoopy’s não oficializa processos de adoção. «A poucos dias do Natal, apareceu um cachorro preso ao portão da minha quinta. Não tinha chip mas, mesmo que tivesse, não o devolvia ao dono, como é óbvio», expôs, concluindo que o grupo «não dá animais na época natalícia porque são vistos meramente como uma oferta, como um brinquedo para crianças quando são muito mais do que isso, são amigos para a vida». l