Do milagre ao descalabro, haja democracia

Com quase toda a certeza, passadas as eleições e confirmada a recondução do Presidente em novo mandato, lá virão novas e mais severas medidas restritivas. Porque os mesmo que dizem para irmos todos votar vão logo dizer que temos mas é de ficar trancados em casa. Pois é. E por quanto tempo? Até ver.

Em maio de 2020, com o verão à porta e passada a primeira vaga da pandemia na Europa e no Mundo, Portugal regozijava-se com o facto de estar no fundo das tabelas de números de infetados e de vítimas mortais do novo coronavírus.

Aqui ao lado, em Espanha, ou além Pirenéus, em França, ou sobretudo passados os Alpes, em Itália, viviam-se situações nada comparáveis com a nossa. Os hospitais rebentavam pelas costuras, o pessoal médico atingia a exaustão, os números eram aterradores.

Por isso se falava em milagre português.

Que de milagre tinha pouco. Os portugueses foram mandados para casa quando não havia covid. Ou melhor, havia, claro, mas muito pouco. Da crise sanitária que conseguimos estancar com relativo sucesso, com um confinamento geral rigoroso e de raras exceções, passámos à crise económica e social.

Recordo-me de ter andado por Lisboa e arredores a filmar para os sites do SOL e do jornal i às 00h00 do primeiro dia de recolher obrigatório. Ninguém. Nem vivalma. Na manhã seguinte, fui reportando em imagens todo o caminho entre Murches e o Beato, às primeiras horas da manhã: nem um carro, ruas e praças desertas, tudo fechado. Única exceção, uma dúzia de trabalhadores nas obras da estação fluvial do Terreiro do Paço, em frente ao Ministério das Finanças e junto ao Cais das Colunas.

Parou mesmo quase tudo. E foi por dois longos e onerosos meses.

Embora contida a pandemia – mas, em virtude da covid-19, prejudicaram-se muitos milhares de doentes não-covid –, não deixámos de ter uma crise de saúde pública, nem suprimos as fragilidades de um sistema de saúde marcado por décadas de desinvestimento – a bem ver, desde que António Guterres multiplicava 3 por 6 e dava 18 mas o resto das contas já não batia certo e muito menos a percentagem do PIB que ia para a saúde (foi há mais de duas décadas, ainda no século passado).

E de então para cá o que mudou?

Portugal não passou do milagre à catástrofe num fósforo e por motivos externos.

Dizer que a pandemia é um problema mundial e Portugal não é exceção é quase um ultraje quando o país já está no topo dos piores cenários.

A verdade é que não se preparou para a segunda vaga – o plano outono-inverno chegou já demasiado tarde e com muitas falhas – nem sobretudo para a terceira: relaxou ao ponto de manter para este fim de semana, em pleno pico de óbitos, de infetados e de surtos descontrolados, uma convocatória de todos os eleitores para irem às urnas confirmar a reeleição do seu Presidente. Votar é seguro, dizem. Até será, mas é de uma incoerência…

Com quase toda a certeza, passadas as eleições e confirmada a recondução do Presidente em novo mandato, lá virão novas e mais severas medidas restritivas. Porque os mesmo que dizem para irmos todos votar vão logo dizer que temos mas é de ficar trancados em casa. Pois é. E por quanto tempo? Até ver.

«Nenhum cidadão português vai votar mais A ou vai votar mais B porque fechámos um restaurante à uma da tarde ou porque permitimos que o restaurante estivesse aberto até às três e meia da tarde. Aquilo que os portugueses querem é que nos foquemos naquilo que é verdadeiramente importante: é controlar a pandemia, salvar a saúde das pessoas e salvar vidas». Estas palavras são de António Costa, no Parlamento, no dia seguinte ao Conselho de Ministros extraordinário que reforçou as medidas de confinamento decretadas no final da semana passada.

Fecha tudo, mas não se pode suspender a democracia.

Leia-se por ‘democracia’ a campanha eleitoral com ajuntamentos que deviam ser ilegais, voto antecipado com filas intermináveis e ajuntamentos ilegais, mais ida às urnas para escolher o Presidente e mais ajuntamentos ilegais e uns largos milhares de cidadãos chamados ao sacrifício de permanecer dia inteiro fechados nas assembleias de voto e sujeitos a um sem número de contactos que igualmente deveriam ser ilegais.

Ao pé disto, que lógica tem encerrar atividades económicas sem sombra de risco aproximado? As livrarias, por exemplo? Antes tivessem afluência que o justificasse. E como pode culpar-se quem tem cumprido escrupulosamente todas as recomendações das autoridades de saúde?

Fecha quase tudo mas os transportes públicos são reduzidos e, como assim, voltam a andar à pinha, embora não faltem ministros a garantir que não há reporte de surtos ou infeções contraídas nos transportes públicos?

A situação é crítica. Descontrolada. O SNS está a colapsar. E o Governo, sem estratégia, conduz à vista, como o PM confessou no Parlamento no dia em que a ministra da Saúde, esgotada, ali fez mais um desesperado apelo à unidade nacional, avisando-nos para o pior.

O confinamento cego e ilógico não é solução. Nem se precavê a saúde pública, antes se antevê maior descalabro, nem a democracia se defende assim.

Enfim, vão todos votar que é um dever cívico. Mas cuidem-se mesmo bem, porque se há coisa que este vírus já demonstrou é que é democrático, não olha a quem.