O senhor da cana verde

Não se podendo dizer que Marcelo Rebelo de Sousa seja um corta-fitas, é pouco mais do que um ‘influenciador’, um responsável que faz pedagogia pela palavra – e parece satisfeito nesse papel. No sistema português, ao contrário do francês, o Governo nem sequer depende politicamente do Presidente da República.

Manuel de Arriaga, o primeiro Presidente eleito da Primeira República, intitulava-se a si mesmo, com amargura, ‘o senhor da cana verde’.

Na história religiosa, ‘o senhor da cana verde’ é Jesus Cristo – a quem, prestes a ser crucificado, colocaram uma cana verde na mão; era o símbolo de um poder que já não valia nada.

O Presidente Arriaga queria, pois, dizer que os seus poderes eram nulos – e que ele era uma espécie de Cristo, sofrendo as dores do cargo sem ter meios para reagir.

Nos debates presidenciais, Marcelo Rebelo de Sousa fez-me recordar Arriaga: interpelado pelos outros candidatos sobre a sua passividade nesta ou naquela circunstância, respondia invariavelmente que os seus poderes não lhe permitiam intervir.

No caso do procurador cujo currículo foi intencionalmente falseado, explicou por mais do que uma vez que a demissão de membros do Governo competia em exclusivo ao primeiro-ministro, como se dissesse: ‘Se fosse eu, demitia a ministra da Justiça; mas não tenho poderes para isso…’.

Acontece que, para lá desta declaração, Marcelo mostrou-se sempre genericamente satisfeito com os poderes que tem.

No debate coletivo com os outros candidatos, isso foi notório: Marcelo empenhou-se a explicar, com professoral paciência, os limites dos poderes presidenciais, não sugerindo em nenhum momento que eles poderiam ser alterados.

Falando muitas vezes mais como um pedagogo do que como um Presidente que se recandidata, Marcelo Rebelo de Sousa adiantou que o nosso sistema não é presidencialista nem parlamentar, é semipresidencialista. E acrescentou que os sistemas presidencialistas conduzem à ditadura.

Nisso tem alguma razão.

O presidencialismo não tem tradição em Portugal, e a única experiência que tivemos nesse sentido – Sidónio Pais – acabou mal.

Mas o sistema parlamentar também nunca correu bem. O exemplo da Primeira República foi revelador e deplorável.

Assim, o que nos conviria seria mesmo o semipresidencialismo.

Mas será o nosso sistema verdadeiramente semipresidencialista?

Sendo também semipresidencialista o sistema francês, será que os poderes de Marcelo têm alguma a ver com os de Macron?

Não têm.

No sistema francês, o poder político está nas mãos do Presidente da República: é este que define as políticas, sendo o primeiro-ministro um mero executor.

Quem fala em nome do Governo, quem responde pelas medidas adotadas – sejam económicas, de segurança interna ou sanitárias – é o Presidente, não é o primeiro-ministro.

Os portugueses conhecem Macron; mas a maioria não sabe o nome do primeiro-ministro francês.

Ora, em Portugal, quem responde pelas decisões politicas não é o Presidente da República mas o primeiro-ministro.

O poder executivo está nas suas mãos.

Não se podendo dizer que Marcelo Rebelo de Sousa seja um corta-fitas, é pouco mais do que um ‘influenciador’, um responsável que faz pedagogia pela palavra – e parece satisfeito nesse papel.

No sistema português, ao contrário do francês, o Governo nem sequer depende politicamente do Presidente da República.

De início dependia – mas uma emenda à Constituição, feita por Mário Soares e Francisco Pinto Balsemão, retirou ao Presidente esse poder – levando, aliás, Eanes a ponderar demitir-se, como pude pessoalmente testemunhar.

Em Portugal, o Governo apenas depende hoje politicamente do Parlamento – o que faz dele um falso sistema presidencialista que evoluiu no sentido parlamentar.

Ora isto é mau.
Sendo o Presidente da República o único responsável político a ser eleito diretamente, seria natural e lógico que fosse ele a determinar as grandes linhas da governação, como sucede em França.

E isso teria grandes vantagens em termos de coerência governativa e de estabilidade política.

Por um lado, não seriam necessárias as laboriosas negociações a que o nosso sistema obriga entre o Governo e partidos da oposição, como agora acontece, desvirtuando a coerência das medidas.

Por outro lado – e partindo do princípio de que o Presidente é em regra reeleito –, haveria durante períodos longos estabilidade política e continuidade nas politicas, evitando-se a instabilidade e os ziguezagues dos sistemas parlamentares.

A evolução mundial vai exigir um reforço do poder executivo.

E isto implica para Portugal um novo desenho constitucional, em que o Presidente da República seja o vértice do sistema, estabelecendo as principais linhas de ação política, tendo abaixo de si um primeiro-ministro dele dependente politicamente.

E o Parlamento deve ser um vigilante da ação do Governo – não deve ser o centro do sistema.

Repito: faz algum sentido que o único homem eleito diretamente esteja limitado a falar, sem poder agir?

Faz algum sentido que o homem que o país vai eleger depois de amanhã não possa sequer demitir um ministro?

Marcelo está satisfeito com os poderes que tem.

Mas os portugueses estarão satisfeitos com os limitados poderes de Marcelo?

E será este o sistema que convém a Portugal?