Três em cada quatro portugueses não vão votar

As eleições presidenciais de 2021 poderão ter uma abstenção recorde de quase 80%. Entre o impedimento de votar pelo isolamento forçado, o receio da pandemia, o mau tempo, a desmotivação ou o protesto, são vários os fatores que contribuem para a não ida às urnas.

A abstenção, que nas eleições de 2016 rondou os 51%, poderá chegar a níveis nunca vistos nas eleições do próximo domingo.

Com efeito, se o politólogo e responsável técnico da Eurosondagem Rui Oliveira e Costa aponta para uma abstenção a rondar os 73% a 75%, de acordo com os dados recolhidos nos seus estudos e segundo a sua experiência de mais de duas décadas e meia de experiências eleitorais, nas contas do Nascer do SOL, considerando o histórico das eleições presidenciais e um conjunto de outros fatores que potenciam o agravamento da abstenção  nestas presidenciais em particular, incluindo o ponto crítico da pandemia da covid-19 no país, este ato eleitoral poderá ficar marcado por um recorde de quase 80% de abstencionistas.

Com efeito, há desde logo o dado histórico de se registar um aumento médio de 15,4% entre as eleições presidenciais para um primeiro mandato e aquelas em que o Presidente se recandidata a um segundo mandato (Soares foi eleito à 2.ª volta em 1986 com 22,01% de abstenção e cinco anos depois com 37,84%; Sampaio ganhou em 1996 com 33,71% de abstenção e em 2001 com 49,09%; e Cavaco Silva contou com 38,48% em 2006 e 53,48% em 2011). Ora, se nas eleições de há cinco anos, na primeira eleição de Marcelo, a abstenção foi de 51,34%, é previsível que, só ponderado este factor, possa prever-se uma abstenção mínima de 66,74%.

Acontece que, como também sublinha Rui Oliveira e Costa, têm de somar-se a estes abstencionistas os que resultam do recenseamento automático de mais de um milhão e 100 mil emigrantes – o que imediatamente faz subir a abstenção em 4,6%. De facto, no caso das presidenciais de 2016, se o total de inscritos era de 9.751.398 inscritos e a abstenção se cifrou em 51,34%, com os novos inscritos (emigrantes) passaria logo para 55,92% (+4,58%).

Assim, juntando estes 4,6% aos 66,74% que resultariam da ponderação do histórico entre as eleições presidenciais para um primeiro e para um segundo mandato, já teremos uma abstenção técnica mínima de mais de 70% (71,34%).

Acresce ainda que, como estimou o especialista Carlos Antunes para o Nascer do SOL (ed. de 16 janeiro), haverá perto de 360 mil eleitores impedidos de votar devido à covid-19 – cerca de 170 mil infetados que já não puderam inscrever-se para voto antecipado e residencial e outros cerca de 190 mil em isolamento profilático.

Mesmo tomando em linha de conta que destes 360 mil, entre casos ativos e sob vigilância, uma boa parte poderia enquadrar-se noutras situações de abstenção ou nem todos sejam eleitores (por poderem ser menores de idade), o facto é que entre estes e os que poderão recear sair de casa para ir votar no domingo face ao confinamento geral e ao estado de descontrolo dos surtos da pandemia, ainda por cima havendo previsões de mau tempo, a abstenção  poderá disparar para além dos 75%.

 

Voto antecipado agrava receio, diz Pereira Coutinho 

O politólogo João Pereira Coutinho, em declarações ao Nascer do SOL, referiu acreditar que a abstenção nas próximas eleições será, «como costuma ser nas eleições presidenciais», muito significativa. O professor catedrático revela a sua previsão face à abstenção nas próximas eleições, enquadrando no entanto com os valores dos atos eleitorais anteriores, explicando que «tradicionalmente os números da abstenção têm vindo a agravar-se, mesmo sem pandemia». «Com a pandemia e o receio de se deslocar é mais do que imaginável que a abstenção será ainda mais elevada», vinca ainda.

As possíveis razões para este aumento, refere João Pereira Coutinho, passam por, além do receio na deslocação às urnas, «a péssima experiência do voto antecipado». Sobre a votação antecipada no dia 17 de janeiro, o professor é taxativo: «Se a ideia era de certa forma reforçar a confiança dos cidadãos de que poderiam comparecer ao ato eleitoral sem temer grandes concentrações de pessoas, grandes multidões, o efeito foi exatamente o contrário.»

A alta abstenção nestas eleições, afirma, poderá nascer de uma soma «da abstenção natural, com a pandemia e o desastre do voto antecipado» que resultará «numa espécie de cocktail perfeito para uma alta abstenção expectável».

A estabilização das democracias tende a fazer aumentar os números da abstenção, defende Pereira Coutinho, justificando assim o aumento destas cifras em Portugal. Além deste fator, lista ainda o «desencanto» dos portugueses com a política nacional como fator desmotivacional. «Existe um desencanto com os partidos que se apresentam em eleições, o que normalmente leva as pessoas a deixar de se reconhecer nas propostas que são apresentadas», explica.

«Nestas eleições presidenciais, o nível geral dos candidatos é baixíssimo, comparando com candidatos eleitorais anteriores», lamenta Pereira Coutinho, alegando que esta poderá também ser uma das razões por trás dos altos números de abstenção.

 

‘Legitimidade reduzida’, para Bacelar Gouveia

Em declarações ao Nascer do SOL, o constitucionalista Jorge Bacelar Gouveia definiu como «fraude eleitoral» uma eleição que, por exemplo, tivesse uma abstenção a rondar os 80%. Apesar de, afirma, do ponto de vista legal bastar «um voto em cinco milhões», o olhar político sobre esta eleição seria completamente diferente, garante o constitucionalista, que avisou ainda: «Basta um voto para eleger uma pessoa, mas uma eleição presidencial em que participa 10% da população não é nada».

Bacelar Gouveia frisa: «Politicamente, é evidente que, se a abstenção for muito grande, quer por razões de oposição aos candidatos, quer por não haver condições técnicas e sociais de votar por causa da pandemia, eu acho que isso lança um anátema terrível sobre a legitimidade, não a legalidade, mas sim a força política de uma eleição em que só participem 10% das pessoas. Esse presidente é um presidente muito fragilizado. Quem ganhar essas eleições seria um Presidente legalmente eleito, mas com uma legitimidade muito reduzida».