“Não queremos que batam palmas”

Precisamos que a população nos ajude, cumprindo com as normas de segurança, que estão em vigor. Não queremos que batam palmas aos profissionais de saúde. Queremos que fiquem em casa.

por Fábio Oliveira, 36 anos
Enfermeiro no centro hospitalar de Coimbra

A situação está a tornar-se mais difícil a cada dia que passa. Mais utentes a chegar à urgência, mais pessoas com sintomas graves, mais mortes a cada dia que passa. Trabalho desde abril de 2020 em serviços de internamento covid e o desgaste físico e mental são as nossas maiores dificuldades. Esta semana, terei realizado entre segunda e domingo cinco turnos de 12 horas (2 noites e 3 manhãs) pois, com a necessidade de abrir mais serviços, os recursos humanos escasseiam. É duro e realmente a população tem enfermeiros, médicos e assistentes operacionais do ‘outro mundo’.

As imagens mais comuns, a que infelizmente nos vai habituando, são a cara de desespero dos nossos doentes. Um não vê a mulher há mais de 60 dias, internada também aqui no hospital com covid-19. As lágrimas nos olhos de quem me ouve dizer ‘vamos baixar o oxigénio para 8 litros/min’ porque os seus valores estão a melhorar (com indicação médica); ou o sorriso inocente e puro de quem ouve de mim ou do médico ‘à partida, amanhã terá alta’, retorquindo ‘e posso jantar com a minha mulher e filho?’. Marca-me também infelizmente a imagem da face dos moribundos pelos quais não conseguimos fazer mais, atingindo o nosso limite, após um esforço enorme em equipa, com médicos e enfermeiros a tentar reinventar soluções para quem já não as tem.

Neste momento, as nossas maiores dificuldades são o desgaste físico e mental, equipas mais reduzidas, cansaço extremo e a não cooperação da sociedade. Estamos muito dependentes da mudança radical de valores e comportamentos da sociedade. Vivemos tempos difíceis, onde todos os dias oiço, vejo, leio, frases de pessoas que manifestam total desprezo pela vida humana, nomeadamente pelas pessoas seniores. Questionam ‘já viram alguém com 30 anos a morrer de covid-19?’. Dizem que a OMS e a DGS andam a enganar a população com uma ‘falsa pandemia’.

Há colegas a ficar de baixa médica por burnout. Os recursos humanos começam a escassear, o que significa mais turnos. Por vezes passamos mais tempo no hospital do que em casa. Ontem, enquanto dava uma entrevista para um conhecido canal de TV, contou-me a minha mulher, que a minha filha com 18 meses se agarrou à televisão a dar beijinhos no vidro e a abanar a televisão, dizendo ‘papá, papá’. No ano passado, estive um mês e duas semanas sem estar em contacto com a minha filha, a dormir no 1.º andar enquanto a minha filha e a minha mulher dormiam no rés-do-chão. Acho que para elas também tem sido muito duro. A minha filha já sente a falta do pai e noto que estou a perder o melhor desta fase da vida. Mas o hospital é a minha segunda casa, os doentes e os colegas são a minha segunda família e nós, enfermeiros portugueses, somos os melhores do mundo e vamos estar sempre do lado da população. Precisamos que a população nos ajude, cumprindo com as normas de segurança, que estão em vigor. Não queremos que batam palmas aos profissionais de saúde. Queremos que fiquem em casa.

Um dia, a minha filha terá muito orgulho do pai que tem e que sacrificou os melhores momentos do crescimento dela, para estar ao lado do país.