A emergência ‘faz de conta’…

Em menos de um ano, desde que foi declarada a pandemia, o país passou do ‘milagre’ ao desastre, paradoxalmente, menos assustado, sem que se pressinta haver um plano concertado para dominar ou, pelo menos, contrariar o alastramento do vírus.

Arrepia pensar que a emergência se banalizou e que, com tantas exceções ao recolhimento obrigatório, será tão improvável a diminuição de infetados como a lista negra de óbitos. 
Em menos de um ano, desde que foi declarada a pandemia, o país passou do ‘milagre’ ao desastre, paradoxalmente, menos assustado, sem que se pressinta haver um plano concertado para dominar ou, pelo menos, contrariar o alastramento do vírus.

Portugal passou a ocupar uma posição cimeira, nada invejável, no ranking mundial dos países com maior número de óbitos e de novos infetados por milhão de habitantes. Uma dramática realidade. E um testemunho eloquente do desleixo e da incompetência governamental na gestão da pandemia.

A vacinação – que o Governo transformou numa intensa campanha de propaganda, ávido de popularidade –, marca passo e, tão cedo, não sairá da prioridade dos principais grupos de risco, com os profissionais de saúde à cabeça, incluindo, mais recentemente, os do setor privado, que ficaram para segundas núpcias.
Parece óbvio que o grosso da vacinação será arrastado, e, se os prazos anunciados forem excedidos, haverá sempre um atraso qualquer dos laboratórios para servir de desculpa.

O país atravessa um momento insólito. Ultimamente, cada boletim da DGS é, invariavelmente, mais sombrio do que o anterior, mas nem por isso se nota que uma boa parte dos portugueses leve a ameaça a sério.
Ao contrário da primeira fase, em que os portugueses foram elogiados pela sua exemplaridade cívica perante a crise sanitária, agora aparentam terem-na interiorizado, como se fosse algo semelhante a uma gripe comum, com a qual é forçoso conviver, sem lhe dar muita importância. E não é. O vírus está longe de ser ‘bonzinho’.

Os transportes públicos continuam apinhados, e se houve alguma redução no tráfego particular esta mal se nota. A emergência entrou em modo de rotina e quanto mais se eternizar menor será a sua eficácia. 
A situação tornou-se crítica, fora de controlo, com os hospitais públicos em cenário de catástrofe e a ministra Marta Temido a ordenar que suspendam de imediato toda a atividade não urgente.
Se as listas de espera para exames, consultas ou cirurgias no SNS, em vésperas da covid, já eram escandalosas, imagine-se o que se segue. 

A hipocrisia política ganhou novos contornos, tanto na Saúde como nas presidenciais. 

Com esse pretexto, o ex-primeiro-ministro José Sócrates – enquanto aguarda o demorado veredito do juiz de instrução para saber se vai ou não julgamento –, decidiu publicar um artigo numa revista brasileira, pressurosamente transcrito na imprensa portuguesa, sempre solícita, a queixar-se da «vaga de degradação política» em Portugal, algo de que só agora se apercebeu, e que lhe passou ao lado à época em que conduziu o país ao limiar da bancarrota.
Com aquele saber de experiência feito que o caracteriza, Sócrates lamentou o desaforo da «maledicência» da sua correligionária Ana Gomes para «agradar a pasquins», que teimam, pelos vistos, em não dar por encerrado o seu protagonismo na Operação Marquês, uma ‘mágoa’ que perturba o seu retiro na Ericeira. 
Mas o que espanta nele quando fala de ‘degradação política’, é a sua amnésia. Bastaria reler, primeiro, a acusação deduzida pelo Ministério Público contra si e os seus amigos.

A vitimização foi ‘chão que deu uvas’. E Sócrates parece não ter consciência disso, talvez persuadido de que, graças à lentidão da Justiça (agora mais ‘especializada’ na vigilância de jornalistas, para lhes espiar as fontes, à revelia de qualquer mandato de um juiz …), haverá maior margem para chegar à prescrição, ou seja, lançar na ‘cesta secção’ uma investigação que exigiu vários anos, até descobrir e cruzar as pistas de muitos labirintos.
Eternizam-se os megaprocessos, como os da Operação Marquês ou do BES, à sombra da sua especial complexidade, enquanto se alega uma crónica falta de meios humanos, que costuma enfeitar a tradicional cerimónia de abertura do ano judicial.

Recorde-se, a propósito, que foi nessa oportunidade, há um ano, que Marcelo Rebelo de Sousa aludiu ao estado da Justiça, recorrendo a uma curiosa metáfora: «A justiça humana pode ser tão lenta nos casos de especial complexidade, que para os crentes mais radicais passa a ombrear com a justiça divina». 
Talvez, por isso, na mesma altura, o presidente do Supremo Tribunal de Justiça, não se inibiu de concluir em relação aos megaprocessos que «o sistema de justiça português tem um problema estrutural» e que «no quadro atual não esperem da justiça outra coisa que não esta, sempre que tenha de lidar com um processo especialmente complexo».
Resta-nos, portanto, confiar na ‘justiça divina’, já que a ‘lei portuguesa’ é intocável. Donde, na Justiça como na Saúde bem podemos esperar sentados…