Da História, da memória, da poesia

Jaguar reflete a ‘época vítrea’ em que vivemos, um tempo em que vemos a poesia ‘rendida à máquina pútrida do marketing’, e incita o leitor a que preste atenção às ‘luzes na noite tétrica’ e ao ‘bombardeado coração do mundo’. 

Por Paulo Sucena

Professor

1. Jaguar é um livro duro, severo, isento de quaisquer sinais lúdicos. Mostra um percurso dramático ao longo do qual o poeta não tem a certeza de que seja possível harmonizar o que é dissonante, mas teima em dizer e dizer-se e a matéria com que lida é uma matéria fragmentária que ele pretende cosmificar em Jaguar.

Se a temática deste livro nos fascina, os inúmeros recursos retóricos e estilísticos superiormente utilizados e habilmente plasmados numa linguagem literária de grande qualidade e originalidade não nos fascinam menos. E acrescento que os 48 poemas de Jaguar atingiram um dos objetivos do poeta, o de oferecer aos leitores uma prosa diamantina, pois neles encontramos sabiamente enlaçados narratividade e imagética.

De outro ângulo, gostaria de sublinhar que Jaguar é percorrido por um certo sentido do trágico. A sua linguagem é dotada de uma forte energia com que o poeta esventra a substância dos dias, perscruta especificidades do sujeito poético e releva aspetos históricos imbuídos de uma tonalidade trágica, tais como a profunda crise do humanismo, sacudida por preocupantes acontecimentos políticos e pelo esboroar de princípios ideológicos carregados de esperança na transformação do mundo e da vida dos humanos, esperança hoje espartilhada nas malhas de um egoísmo feroz, esmorecida pelos solavancos das desigualdades e injustiças, asfixiada por um pensamento dominante que é opressor das cada vez mais frágeis aspirações humanas, submersas nas teias de um neoliberalismo sem alma.

Portanto, não é apenas um livro voltado para o cristal e fogo da poesia e da arte, ‘irmã da dor’, mas também uma subtil e profunda reflexão de alguém que se interroga, inserido na temporalidade histórica e atento às circunstâncias em que os humanos se movem.

2. Uma das linhas de sentido de Jaguar desenvolve-se nos terrenos da arte poética de António Carlos Cortez (ACC), com relevo para o percurso que leva à construção do poema, esse chiaroscuro ou essa ‘incerta chama’. Como o pensamento ensaístico de Manuel Gusmão ecoa lá no fundo deste livro, vou-me servir de palavras suas dedicadas à já referida ‘incerta chama’. Escreve Gusmão: «Quando na contingência e na obstinação a poesia retorna ou insiste, o poema pode acender-se no brilho cego de uma absoluta necessidade, ou no estremecer de uma certeza sem garantias».

ACC glosa profunda e inteligentemente aquela ideia e deixa nas páginas de Jaguar um impressivo e intenso olhar sobre os desconcertos do mundo e as incertezas da vida e da poesia. A sua é uma poesia atenta ao devir histórico, que a angústia e a amargura visitam sem lhe secar a fonte da esperança. 

3. Sublinho agora alguns aspetos que se revestem de inegável relevância na poesia de ACC: a produção do poema surge como um ato de magia que nos revela um objeto de encanto, marchetado de metáforas e de jogos de imaginação que cristalizam episódios da vida, resgatam memórias, refletem a História, tematizam perfis da substância do sujeito poético.
Jaguar também nos dá a ler o poema como um desafio, algo excessivo e insubmisso. O poema afronta, o poema é desmesura e não comedimento. É fruto da entrega total do poeta à poesia.

Jaguar reflete a ‘época vítrea’ em que vivemos, um tempo em que vemos a poesia ‘rendida à máquina pútrida do marketing’, e incita o leitor a que preste atenção às ‘luzes na noite tétrica’ e ao ‘bombardeado coração do mundo’. Anotemos ainda que o poeta aborda de um modo percuciente as temáticas do amor e da morte e também da solidão, cogita sobre a produção do poema e seu alcance, e debruça-se sobre o tempo histórico e sua opacidade sanguínea.
Mantendo-me fiel à leitura que venho fazendo de Jaguar, creio ser legítimo acrescentar que o vento que sopra neste livro não é um vento lírico, é um vento violento de algum modo familiar daquele que atravessa a velha tragédia grega no que ela encerra de pungentes conflitos. A Moira não permaneceu encerrada nos escritos dos dramaturgos da Antiguidade Clássica nem nos poemas de Homero, antes percorreu um longo caminho até chegar a Jaguar, cujo autor não enjeita a força do destino e reconhece que o poeta está condenado, inexoravelmente, a morar na linguagem e a nela morrer, com a consciência de que a vertigem da poesia não tem remédio e de que o poeta vive enclausurado na sua música, promovendo o doloroso parto do poema ‘cheiodelágrimasededúvidas’.

Isso não impede ACC de abordar em Jaguar, para além dos temas da violência, do corpo, da memória, da injustiça, do amor e da morte, os problemas da guerra e de outros desconcertos do mundo, como seja o extermínio de judeus no campo de Treblinka e o massacre perpetrado na floresta de Katyn.

4. Sem esquecer a luxuriante linguagem de Jaguar, a sua fulminante imagética, as ousadias retóricas e estilísticas, o ritmo dos poemas, o rigor com que estão construídas as seis secções sob as quais flui um velado veio, o brilho com que esta poesia transfigura a realidade, ater-me-ei agora a um ou outro aspeto mais particular deste esplêndido livro.

A leitura da primeira secção de Jaguar leva-nos a concluir que o poeta se reconhece a si próprio quando percebe que as imagens que eclodem dentro de si são o visível e que a física dos objetos é algo velado.

O criador daquelas imagens, o poeta, é dado como uma transmutação do homem comum e essa transmutação ao operar-se desvela nele uma nova linguagem enraizada numa velha tradição poética, o que significa que o poeta reconhece que a sua voz não é uma voz estreme que não acolhe outras, mas sim uma voz que se integra num antiquíssimo coral.

A instituição da voz do poeta obriga o homem que ele também é a deixar ‘arder a pele’ para depois mergulhar no denso mar das palavras. Caçá-las, no interior da substância escura da vida, vai ser a sua tarefa de jaguar. Esse é o seu ofício, o ofício de ‘um assassino concentrado’ que ergue, em tempos sombrios e em cidades escuras, as arquitraves do poema. Do poema capaz de tornar visível a substância escura da luz graças ao trabalho da ‘mão mental’ injetada pelo ácido absoluto da linguagem, nas palavras do poeta.

5. A última secção do livro é fundamentalmente um exercício poético com o qual se pretende dizer que alguém, depois de superar os mais variados e exigentes desafios, atingiu o ponto mais alto do seu percurso onde apenas são audíveis as vozes dos poetas.

Esta secção revela-nos ainda que o sujeito poético atingiu a maturidade na sua arte e é senhor dos instrumentos necessários, entre os quais uma voz original, para produzir o poema, uma ‘seta felina’, ‘um estiramento’, um alongamento de si próprio. O jaguar encontrou a figura matricial, uma pequena voz primitiva com que subiu às altas colinas da palavra e aí encontrou a força da sua dicção que sendo singular é contudo herdeira de uma multidão de vozes.

Tinha chegado a hora do vidente travar a guerrilha com o real, apoiado pela ‘cobra da imaginação’. E também de se assumir como um ‘escafandrista’ que mergulha à procura do cerne da poesia para melhor poder transformar a realidade do mundo numa realidade de fogo.
Concluo com a certeza de que esse múltiplo labor é, no fundo, o essencial da missão de ‘o último iniciado das grandes revelações’, que nos segreda no final de um poema dedicado a Manuel Gusmão: «Espero nos grandes portos antigos, onde os barcos em ruínas estão exaustos de ondas explosivas, essa forma de morrer como quem nasce».