Biblioteca Pessoal: A santíssima Trindade

A ação combinada da pressão imobiliária e da pandemia expulsou do Chiado um dos santuários da cultura lisboeta.

Devo ter entrado pela primeira vez na Livraria Campos Trindade em 2006, por preciosa indicação de um amigo que também gosta de livros. Antes disso, embora lá tivesse passado muitas vezes, nunca me atrevera a transpor a porta encostada, talvez vagamente intimidado pelo aspeto venerável e requintado que se respirava lá dentro. Na verdade, parecia-me mais uma espécie de pequeno clube reservado a sócios do que um alfarrabista aberto ao público.

Ao longo dos quinze anos que decorreram desde então visitei esta casa dezenas ou mesmo umas poucas centenas de vezes. E era rara a ocasião em que saía de lá de mãos a abanar. Ao contrário do que o ambiente de clube – ou de velha casa senhorial – poderia indiciar, os preços eram muito convidativos. E, como se não bastasse, o jovem proprietário, o Bernardo, ainda arredondava os valores para baixo – eu calava-me.

É difícil fazer a contabilidade de tudo o que trouxe do Trindade ao longo destes quinze anos. Mas posso referir alguns dos troféus mais estimados, como os quarenta e tal volumes da Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira (mesmo sabendo eu que as enciclopédias estão em desuso e que a Portuguesa e Brasileira nem é das mais cotadas); a edição monumental dos Pássaros da América de John James Audubon, no formato baby elephant folio (não sei quanto pesa um elefante bebé, mas sei que este pequeno monstro tem quase dez quilos); a primeira edição francesa das obras completas de Dostoievsky, em 17 volumes, tão castigada pelos meus filhos; uma edição de bolso das peças de Shakespeare impressa em Edimburgo em 1900; ou a ‘joia da coroa’, o primeiro dos três volumes da Flora Americana do farmacêutico, botânico e ilustrador alemão Johann Zorn – Dreyhundert auserlesene amerikanische Gewächse (Trezentas plantas americanas escolhidas), publicado em Nuremberga em 1787 e que me foi oferecido pelo meu aniversário em 2014.

Além dos livros, também de lá trouxe muitas outras coisas. Gravuras antigas, um lote de dezenas de números da Burlington Magazine (que carreguei Chiado acima, Chiado abaixo, em prestações não tão leves quanto isso…), uma estranha máquina de calcular dos anos 50, maravilhosos CDs de música clássica e até uma curiosa coleção de 60 ovinhos, a maioria deles de pedras comuns e um ou outro de alguma pedra semi-preciosa.
Havia dias gloriosos, em que as estantes, as mesas e até o chão estavam repletos de mercadoria acabada de chegar. Outras vezes, o Bernardo desculpava-se por o stock estar ‘fraco’. Mesmo assim, eu encontrava sempre alguma coisa que me interessava, como encontrei, da última vez que lá estive, três livros, que custaram o preço de um e constituem agora uma espécie de souvenir de despedida.

Quando Tarcísio Vazão Trindade, o pai de Bernardo e o fundador da casa, faleceu de Parkinson a 15 de março de 2011, escrevi no meu diário: «Paz à sua alma e longa vida à sua livraria». Lastimavelmente, a ação combinada da pressão imobiliária e da pandemia expulsou do Chiado este santuário da cultura lisboeta. Ao fim de 44 anos, na quarta-feira 13 de janeiro, a porta do n.º 44 da Rua do Alecrim fechou-se de vez. Muitas religiões acreditam que a alma sobrevive à morte do corpo. Esperemos nós, seguidores da religião do livro, que também a bonita história da Campos Trindade continue a ser escrita noutro sítio qualquer.