Um aviso e demasiadas orelhas moucas

Marcelo Rebelo de Sousa percebeu, como poucos, o que os eleitores deixaram bem expresso nas urnas. Não foi um voto na continuidade. Foi um aviso de ainda contida revolta, atrás do biombo, com caneta própria e gel desinfetante. Foi um Basta! ou um Chega!, mas não radical, fascista, xenófobo ou tudo aquilo o que quem…

Para trás mija a burra, diz o povo com toda a razão, porque não adianta chorar sobre leite derramado.

Mas a verdade é que, a cada notícia que vamos tendo por estes dias, não podemos deixar de nos questionarmos – de nos indignarmos – como foi possível os eleitores portugueses terem sido convocados às urnas em pleno pico desta nova vaga da pandemia, num cenário dramático, de descontrolo e já na inevitabilidade de um pedido de ajuda internacional?

É de loucos.

Só um, apenas um dos protagonistas e ‘comentadores’ que tivemos oportunidade de ouvir no rescaldo da noite eleitoral parece ter tido noção disso.

Todos os outros se regozijaram e enalteceram a participação do eleitorado em mais um ato eleitoral, a responsabilidade cívica e o sentimento democrático do povo que assumiu o risco de enfrentar o vírus e ir votar, em muitos casos aguentando em longas e demoradas filas.

Sim, senhor. Quais Neros tocando lira enquanto Roma ardia.

Valeu que esse comentador de exceção, não por acaso Presidente da República reeleito, começou a intervenção mais esperada da noite sem rodeios nem mais voltas, que já dera as que tinha a dar (e foram demais): ‘Número de infetados w, número de internados x, número de internados em cuidados intensivos y, número de mortos z’…

Marcelo Rebelo de Sousa percebeu, como poucos, o que os eleitores deixaram bem expresso nas urnas.

Não foi um voto na continuidade. Foi um aviso de ainda contida revolta, atrás do biombo, com caneta própria e gel desinfetante.

Foi um Basta! ou um Chega!, mas não radical, fascista, xenófobo ou tudo aquilo o que quem cego ou sectário não quer ver.

Foi, sim, um voto de protesto e um apelo a ver se os chamados partidos tradicionais de alternativa na governação (PS e PSD) acordam ou despertam. Os outros, dos extremos do chamado sistema, PCP, BE, CDS e IL, foram reduzidos à sua quase irrelevância. E daí o resultado de André Ventura, ou do líder do Chega. Não há 12% de radicais de extrema-direita em Portugal. Mas são muitíssimo mais do que 12% os que já não pactuam com um status quo insustentável.

Chamar os portugueses às urnas em pleno crescimento da pandemia é apenas um exemplo de como os poderes instituídos não sabem defender os seus cidadãos e guiá-los na tormenta até porto seguro.

Desesperam. Mete dó ver a empenhada e bem intencionada mas esgotada ministra da Saúde apelar emotiva e desesperadamente à união: «Ajudem-nos, todos, por favor».

Da ministra da Saúde, numa crise sanitária, espera-se comando, frieza, convicção nas orientações e nas opções tomadas, autoridade. Não aflição e emotividade.

Estamos a reviver a tragédia dos incêndios de 2017 em modo de pandemia ou guerra biológica: a primeira vaga foi trágica mas, como o Governo se preocupou mais em cuidar da propaganda do que da prevenção e planeamento, a segunda foi muito pior.

De facto, se Pedrógão em junho foi trágico, os incêndios de outubro demonstraram que nada se aprendeu e cometerem-se os mesmos gravíssimos e fatais erros e a tragédia repetiu-se país fora.

E agora como então coitada da ministra.

Não se podia prever, todos deram tudo o que podiam dar, era inevitável. As explicações são sempre as mesmas. Como a descoordenação e o desnorte, a falta de preparação, de capacidade e de competência para responder à crise.

E mais impressão fazem as sucessivas operações de propaganda política que evidenciam a ausência de uma estratégia de combate, concertada e articulada com os vários operadores da Saúde, com uma cadeia de comando inequívoca e uma comunicação eficaz. Quando o primeiro-ministro e seus ajudantes assumem que o combate é feito à medida da evolução da pandemia, está tudo dito: não há ação programada e consistente, há reação conforme as possibilidades, tipo desenrascanço.

Os resultados das presidenciais obrigam a uma reflexão à esquerda e à direita.

Marcelo percebeu o eleitorado e não exultou com um resultado que, em termos pessoais, foi extraordinário. E disse-o, quando falou da ‘exigência’ que o povo reclama ao Presidente para com os outros órgãos de soberania e da Administração Pública.

De resto, pelas reações da noite eleitoral e dos dias seguintes, quase todos os dirigentes partidários não interpretaram bem o que ainda ecoa das urnas.

Rui Rio e Francisco Rodrigues dos Santos, pasme-se, tocaram a reunir para acertar plataformas de entendimentos para as autárquicas. É o que os preocupa. E enquanto assim for, os principais dirigentes deste país continuam sem perceber por que razão André Ventura e o Chega sobem nas intenções de voto.

É preciso saber ouvir. E não fazer orelhas moucas mesmo quando o povo, ordeiro e submisso, dá o seu grito de revolta cívica e civilizadamente. Como fez no domingo. Apesar das circunstâncias.