Manuel Carmo Gomes: “Medidas proporcionais não funcionam com este vírus”

Epidemiologista da FCUL, um dos peritos ouvidos pelo Governo, diz que previsões apontam para pico de casos na próxima semana mas descida vai depender da variante e do confinamento, que ainda não está ao nível de abril. Não acredita que seja possível desconfinar antes do meio de março e defende que o desconfinamento deve ser…

Já é possível prever o pico de casos desta vaga?

As projeções que fazemos neste momento são de que iremos atingir o pico de contágios a nível nacional na primeira semana de fevereiro. Evitamos falar de números, porque a situação altera muito de um dia para o outro, mas em termos de contágios reais deveremos ficar algures entre 16 mil e 18 mil casos. Os 16 mil casos que tivemos reportados esta semana (quarta-feira) corrigem os dias anteriores e referimo-nos sempre a médias semanais. Mas pelo menos a ideia de que o pico de contágios poderá verificar-se na primeira semana de fevereiro parece-nos suficientemente robusta.

Quer dizer que o confinamento está a funcionar?

Aparentemente, sim. A partir de 15 de janeiro notámos um abrandamento no crescimento da incidência dos 18 aos 24 anos. E desde dia 21 notamos que as taxas de aumento de incidência por grupo de idade tiveram um declínio nítido, especialmente entre os jovens entre os 13 e os 17 anos e nos 6 aos 12 anos, mas não só. Dou um exemplo: no dia 21, a taxa de aumento de casos dos 13 aos 17 estava em 5,5%, quer dizer que nestas idades, de um dia para o outro, o número de novos casos aumentava 5,5%; a 25 de janeiro estava em 3,3%; ou seja, as taxas começaram a decrescer. Quando chegarem a zero significa que a incidência não está a crescer e quando forem negativas teremos passado o pico. Esta semana mantiveram-se positivas, mas estamos a ir no bom caminho. Mas as pessoas não tenham ilusões: neste momento o número de novos casos continua a aumentar, mas esse aumento desacelerou.

Perante a incidência a que chegamos, janeiro comprometeu a situação epidemiológica para os próximos meses?

Não foi janeiro, foi o acontecimento do Natal que espoletou isto tudo. É o grande perigo de estarmos com a incidência desta doença num nível muito alto, e no Natal estávamos na zona dos 3500 casos por dia, o que é muito alto. Basta um pequeno descuido. No Natal houve um descuido de quatro, cinco dias, 25, 26, 27, 28, 29. Quatro, cinco dias de descuido têm estas consequências e é isso que as pessoas têm dificuldade em perceber.

O Governo já assumiu que se houvesse conhecimento da variante inglesa em Portugal no Natal, teria endurecido as medidas. Saber-se que estava a circular em Inglaterra, país com ligações a Portugal, e sendo mais transmissível, não poderia ter apoiado medidas mais fortes mais cedo?

Uma coisa é saber isso, outra é haver evidência de que estava a circular em Portugal e na altura do Natal não havia esses  dados. Agora, a necessidade que sentimos de confinar duramente logo a seguir ao Ano Novo não era por causa da variante. Não precisávamos da variante para saber que tínhamos de confinar imediatamente e em força logo a seguir ao Ano Novo. A variante vem agravar. Quando no dia 12 de janeiro recomendei (na reunião do Infarmed) que se fechasse tudo, incluindo as escolas, à exceção das escolas dos miúdos mais pequenos, não era por causa da variante, mas da velocidade a que a epidemia estava a subir. Dissemos: vamos ter 14 mil casos no dia 24 de janeiro. Enganámo-nos por três dias, porque os 14 mil casos chegaram mais cedo. Não foi por causa da variante, a variante só torna as coisas mais negras.

O PR anunciou esta semana que as medidas poderão manter-se até março, inclusive. É possível prever quanto tempo pode ser necessário manter este nível de confinamento?

Para responder a isso teremos de conseguir perceber melhor o impacto da variante e do confinamento. Apesar de todas as dúvidas que ainda existem, estou convencido que será muito difícil ter a epidemia num nível que seja aceitável em termos de necessidade de hospitalizações antes de meio de março, isto com base no que foi a evolução em abril, e, com base na análise dos níveis de confinamento que é feita pelo Instituto Ricardo Jorge, ainda não estamos com o confinamento que tivemos em abril. Estamos a caminhar para lá, mas ainda não chegou aos máximos que tivemos em abril. Como digo, estamos a baixar as taxas de crescimento, mas se não chegarmos aos máximos de confinamento de abril a incidência poderá baixar ainda mais devagar do que aconteceu na altura, além da presença da nova variante ser outra incógnita. Mas neste momento não vejo como vamos descer para níveis de incidência na zona dos 3500/4000 casos que estávamos antes do Natal antes de meio de março. Acho muito difícil que isso aconteça.

Existe o risco de uma quarta vaga se houver um desconfinamento mais cedo?

Sim, claramente. Se sairmos do confinamento restrito em que estamos demasiado cedo, isto pode voltar a subir. Já temos muita experiência de que isso acontece.

E mesmo nessa altura o desconfinamento terá de ser gradual?

Isso sempre o dissemos e agora é igual, o desconfinamento deve ser gradual e monitorizado. Eu começaria pelas escolas das crianças mais pequenas, porque aliás nunca defendi que as escolas dos mais novos fossem encerradas. E a partir daí ir vendo o que se está a passar, o problema é que para ver isso é sempre preciso esperar 15 dias. Nesse sentido, as recomendações que faria, e provavelmente farei, serão difíceis de aceitar.

Um virologista alemão alertou que o verão deste ano pode ser pior do que o do ano passado. Concorda?

Acredito que não. Depende do que se entende por pior. Para mim, pior são os internamentos e a pressão sobre os hospitais. Se definir como pior o número de novos casos por dia, pode ser diferente, mas no verão o R da doença baixa naturalmente. Em termos de hospitalizações espero que haja uma melhoria. Espero ver o impacto da vacinação nas hospitalizações quanto muito no fim de março.

Já existe algum indício de que a vacinação dos mais idosos nos lares esteja a ter um impacto na redução de internamentos?

Infelizmente ainda não o estamos a ver, mas houve também um fator de algum azar que foi ter-se começado a vacinação com esta situação e com muito surtos. Os lares que estão em surtos não podem ser vacinados e ao mesmo tivemos alguns casos de idosos que foram vacinados e depois tiveram a doença, tudo indica que já estavam a incubar o vírus.

O Presidente da República admitiu esta semana que Portugal podia estar a ser desta vez o primeiro país afetado pela terceira vaga. Há sinais que a onda pode estar por chegar a outros países?

Andamos sempre em ritmos diferentes. A Irlanda teve um aumento colossal a seguir ao Natal. Não me substituo ao que diz o Presidente da República, e é evidente que existe uma sensação de que da outra vez as coisas começaram do lado de lá, mais a ocidente, e vieram andando para cá e agora parecemos ser o país em pior estado e somos nós que vamos à frente, mas há que ter em atenção que os outros países no centro da Europa estavam confinados. Antes do Natal uma grande parte da Europa estava com confinamento, inclusive com escolas fechadas. Não adianta muito fazer comparações dessas, não me parece que seja útil.

Tendo em conta o que se passou, que lição se deve tirar? 

Parece-me que a lição que se pode tirar é que com um vírus que se transmite desta maneira não se pode agir tomando medidas proporcionais ao que parece ser a situação. Não se pode andar a ver a incidência da doença e dizer vamos fechar isto e passados uns dias ajustar e fazer mais isto. Com certeza que é o intuitivo para as pessoas e agentes económicos, mas não se pode. É errado. Não se consegue controlar um vírus que se propaga exponencialmente dessa maneira e a experiência está a demonstrar isso. Tem de se ser mais contundente quando são ultrapassadas linhas vermelhas e a questão é onde se colocam as linhas vermelhas. Infelizmente, a nossa experiência é que as linhas vermelhas estão muito antes daquilo que a sociedade está disposta a aceitar. A nós, parece-nos que nunca podemos permitir que o R atinja 1,1 ou permaneça em 1,1.

Que é o patamar em que estamos agora.
Mas já esteve mais alto. Quando se chega a 1,1 é preciso atacar o problema independentemente do nível de incidência em que se está, a questão é que isso é muito difícil de aceitar. Tivemos R de 1,1 em setembro e outubro e a incidência não estava muito alta, mas mantendo-se assim muitos dias é perigoso. Mas quem é que aceitaria um confinamento com o nível de incidência com que estávamos em setembro e em outubro? Quem é que aceitava fechar?
Outros países fecharam mais cedo, a Alemanha fechou e nunca teve um nível de incidência idêntico ao de Portugal.
Há países que aprenderam essa lição. A Alemanha é um bom exemplo. Obviamente que há o argumento da capacidade económica e há países que têm outra capacidade económica. O que digo é, do ponto de vista epidemiológico, sabemos que é assim e quais são os resultados. Do ponto de vista social e de aceitação pela população é muito difícil. Outro exemplo de linha vermelha é o nível de incidência. Na Faculdade de Ciências temos comparado o nível de incidência com a ocupação hospitalar e quando temos uma incidência em torno de 4 mil casos por dia a ocupação hospitalar anda por metade, 2 mil internados covid-19 e em UCI aproximadamente 15% dos internados, à volta de 200 a 300 camas ocupadas. Se acharmos que isso é a capacidade hospitalar que podemos ter dedicada à covid-19 em Portugal, por que é isso que conseguimos gerir, então o nível de incidência não pode passar dos 4 mil casos. Onde quer que esteja o R. Mesmo que o R não esteja em 1,1, se o país está a chegar aos 4 mil casos, tem de fechar todo, logo. Seria outro exemplo de linha vermelha. Outra é a positividade: a OMS recomenda menos de 5%, estamos com perto de 20%. Provavelmente, 5% é muito exigente, mas com uma positividade acima de 10% é outra linha vermelha.

Como vê a proposta de rastreios populacionais com testes rápidos para o país poder funcionar?

Fazer testes rápidos à escala nacional é uma medida pouco eficaz, a percentagem de casos que vai apanhar é relativamente baixa e exige muitos recursos. A sensibilidade dos testes é baixa e é preciso fazê-lo repetidamente. Se se disser que se faz isso duas vezes por semana durante várias semanas, concordo, mas não sei se é exequível, requer imensos recursos. Em Rabo de Peixe fizeram algo parecido, testaram toda a gente mas requereu o envolvimento de 100 ou 200 pessoas. Fazer uma coisa dessas num espaço restrito é exequível, a nível nacional é muito difícil. Eu e muita gente defendemos testes rápidos frequentes em certos contextos, cuidadores de lares, pessoas que se expõem muito e podem transmitir. Mas mesmo aí têm de ser testes feitos com frequência, duas vezes por semana. A pessoa pode estar infetada, não testar positivo hoje mas testar daqui a três dias.