Cancro. Depois de um ano de pandemia, é preciso um plano Marshall?

Assinala-se hoje o Dia Mundial da Luta Contra o Cancro. Por ano são diagnosticados 50 mil portugueses e há quase 30 mil mortes por cancro. O balanço do impacto de um ano de pandemia só se poderá fazer mais tarde mas houve menos diagnósticos e menos doentes operados, também nos IPO’s.

A doença é silenciosa mas o impacto todos os anos é enorme, nos doentes, nas famílias, no país. Por ano são diagnosticados com cancro cerca de 50 mil portugueses e a doença é a segunda causa de morte no país – em 2018, o último ano com dados disponíveis, foi a causa de morte de 28 451 portugueses, 77 mortes a cada dia. Assinala-se hoje o Dia Mundial da Luta Contra o Cancro e o balanço do impacto da pandemia na resposta aos doentes oncológicos em Portugal está ainda por fazer – a presidente da Sociedade Portuguesa de Oncologia estimou numa entrevista recente ao Nascer do SOL que possam ter ficado por diagnosticar em 2020 pelo menos mil doentes, com mais diagnósticos tardios a chegar a consultas – o que a médio e longo prazo pode traduzir-se em quebras nos índices de sobrevivência. A informação disponível confirma quebra de atividade nos hospitais públicos, que tratam a maioria dos doentes. Também os rastreios estiveram parados em 2020 durante alguns meses e em alguns casos todo o ano e a menor dificuldade no acesso aos médicos de família é apontada como outra barreira ao acesso, que em qualquer área da saúde está ligada aos resultados.

Em 2019 os três IPO’s fizeram 24 042 mil cirurgias, programadas e urgentes, e no ano passado foram 20 977

Menos operações, menos doentes encaminhados para os hospitais

Um balanço agora já fechado no Portal da Transparência do Ministério da Saúde diz respeito à atividade cirúrgica nos hospitais públicos. É apenas uma face da atividade nos 49 hospitais e centros hospitalares públicos. Os dados atualizados esta semana, que o i analisou, revelam que em 2020 fizeram-se menos 115 775 cirurgias programadas nos hospitais face a 2019, uma quebra de quase 20%. Os dados não discriminam o tipo de cirurgia e não permitem perceber ainda qual foi a evolução na cirurgia oncológica, uma análise que ainda não foi disponibilizada e que todos os anos mostra doentes operados para lá dos prazos recomendados, mas a queda é transversal e também os IPOs operaram menos doentes no ano que passou, com quebras entre os 5% e os 20%. Em 2019 os três IPO’s fizeram 24 042 mil cirurgias, programadas e urgentes, e no ano passado foram 20 977.

A maior quebra aconteceu no IPO do Porto – em 2019 foram operados 12 576 doentes e em 2020 10490. No IPO de Lisboa houve 5365 operações programadas, menos 10,7% face a 2019, e também menos cirurgias urgentes. No IPO de Coimbra, uma quebra menor: foram feitas 4413 cirurgias programadas, uma quebra de 5%. 

Os números refletem um ano em que todos os hospitais tiveram de adaptar rotinas e houve quebras nas referenciações para consultas e cirurgia – que diminuem o número de doentes a operar e darão nos próximos tempos a ilusão de menos doentes à espera. Ao mesmo tempo, na primeira vaga como agora, mais situações de profissionais infetados, isolados e em quarentena, perturbam a capacidade de resposta dos serviços. 

No IPO de Lisboa, o ano terminou com uma quebra de 8,9% no número de novos doentes, revelou ao i o hospital. Em 2019 tinham sido referenciados para o instituto 18 154 doentes e no ano passado foram 16 540. João Oliveira, presidente do IPO de Lisboa, explica ao i que a maior quebra foi nos doentes com pedidos de consulta feitos pelos centro de saúde (-22% face a 2019), contrabalançados por quebras menores nos doentes que se deslocaram ao IPO pelo próprio pé ou pedidos recebidos pelo gabinete de referenciação do instituto. No final, acabaram no entanto por iniciar o seguimento de mais doentes do que no ano anterior, o que significa que ficaram com mais doentes – e essa realidade tem sido também a das últimas semanas, em que os hospitais foram forçados a voltar a parar atividade cirúrgica, mesmo prioritária, e alguns doentes têm sido encaminhados para o IPO. “É um trabalho em rede que já existia e a que respondemos com aumento da atividade. E o que tenho encontrado nos profissionais do IPO é não ficarem atrás do esforço que os outros estão a fazer nas suas circunstâncias”. 

João Oliveira diz que a pandemia, com as novas rotinas a que obrigou os hospitais no despiste de doentes positivos e equipamentos, diminuiu por si só a “velocidade” de resposta mas o esforço foi sempre manter a atividade e houve áreas como o transplante de medula onde 2020 acabou com um aumento de atividade face a 2019: foram feitos um recorde de 90 transplantes de medula depois de 77 em 2019. Houve por outro lado menos 10 mil primeiras consultas, também uma quebra de 20%, ainda que o número de consultas em telemedicina tenha triplicado, o que permitiu manter o seguimento de doentes. 

Quanto a balanços globais no seguimento de doentes oncológicos no país, o médico defende que é expectável que sejam negativos mas conclusões só se poderão estabelecer mais tarde. “Em termos de atividade no global é óbvio que foi menor, sobretudo na área de diagnóstico, até porque muitos diagnósticos de cancro são feitos em torno de cuidados de saúde primários, clínicas que fazem exames e hospitais gerais públicos que tiveram de virar a sua atividade para a covid-19. Temos de colocar a hipótese de que a implicação para os resultados no tratamento no cancro é deletéria, mas dizer exatamente qual foi exige maior conhecimento, mais dados e os tempos destas análises nunca são rápidos. As coisas mais inadiáveis julgo que globalmente encontraram resposta dentro do SNS. Pelo menos no IPO é o que constatamos, não querendo dizer com isto que o que ficou para trás não precisava de ser tratado.”

No IPO do Porto, somando toda a atividade cirúrgica, há uma redução de 20% em 2020, diz ao i o presidente do conselho de administração, Rui Henrique. Foi maior nos primeiros três meses da pandemia, quando houve o encerramento parcial do bloco operatório central, “motivado por quarentena e doença covid-19 nas equipas cirúrgicas e pela necessidade de adaptar as áreas de internamento, o que reduziu a capacidade de resposta”, recorda. A partir de junho, começou a recuperação, mas o ano ficaria ainda aquém do ano anterior. E no que diz respeito a novos doentes, no IPO do Porto a quebra de referenciações foi ainda maior: os doentes referenciados diminuíram 17% no ano passado, sendo as áreas mais afetadas a patologia mamária e digestiva, “o que em parte refletirá o impacto negativo da pandemia nos programas de rastreio (cancros da mama e colo-rectal)”. Já em termos das consultas médicas, e num universo de cerca de 390.000 em 2020, a quebra verificada face a 2019 foi de cerca de 0,3%. E também aqui o ano não foi pior pelo reforço que houve nas teleconsultas. E porque se tentou combater o medo de procurar cuidados de saúde. “A partir de junho, a vasta maioria das consultas regressou à modalidade presencial, denotando que os doentes do IPO do Porto não sentiram receio de se deslocarem ao hospital”, reforça, por escrito, o responsável, considerando que no cômputo geral, o ano terminou menos mal do que se afigurava, mas as últimas semanas voltaram a perturbar todo o sistema. “A expectativa é que em 2021 o número de doentes diagnosticados com cancro sofra um acréscimo, situação para a qual temos de estar preparados.”

 2020 foi um ano horribilis para a oncologia nacional, dramático. Vítor Veloso, Liga Portuguesa Contra o Cancro

Plano de ação precisa-se

A Liga Portuguesa Contra o Cancro tem traçado um cenário mais negativo. A notícia mais positiva, diz ao i Vítor Veloso, presidente do Núcleo Regional do Norte da Liga Portuguesa Contra o Cancro, chegou ontem: a Comissão Europeia apresentou um Plano Europeu de Luta contra o Cancro, com metas e 4 mil milhões de euros de fundos europeus reservados para estratégias nesta área. Vítor Veloso alerta que a entrada no sistema é o principal problema e essa pode permanecer invisível, enquanto os hospitais respondem ao que lhes chega. Agora que os rastreios estão a ser recuperados, a Liga tem visto pessoas que deviam ter feito exames há um ano. Só no Norte, exemplifica Vítor Veloso, no ano passado houve 200 mil mulheres que não foram rastreadas e a estimativa é que entre todos os rastreios tenham ficado por diagnosticar 600 cancros precoces potencialmente curáveis. “O balanço só pode ser altamente negativo em relação aos cuidados oncológicos que o Estado conseguiu prestar e ao plano que existiu, praticamente esqueceram-se que existiam doentes crónicos. Os médicos dos centros de saúde estão desviados para tarefas administrativas e acompanhamento de covid, os doentes não chegam aos médicos e não conseguem fazer as suas queixas e não lhes são pedidos os exames necessários para o diagnóstico. Quando têm diagnóstico, a referenciação acaba por ser muito tardia. Os hospitais gerais estão com mais dificuldades e doentes sem diagnóstico à partida não vão ao IPO”, resume. 

Para Vítor Veloso, é necessário um plano de ação e critica o Governo por não o ter estruturado mais cedo. “Tivemos um período no verão de acalmia em que isso poderia ter sido acautelado e estruturado e nada foi feito. 2020 foi um ano horribilis para a oncologia nacional, dramático. Os ganhos que tínhamos conseguido com os rastreios foram perdidos. Esperemos que as coisas melhorem e que surja um plano e isso tem de partir do Governo, não é possível partir dos hospitais que não conseguem andar a angariar doentes pelo país fora”. 

Gostaria que para o SNS fosse a mesma coisa. Que muitas das medidas excecionais que tivemos por causa da pandemia se tornassem definitivas. João Oliveira, presidente do IPO de Lisboa

Será preciso um plano Marshall nesta área? Para João Oliveira, houve algumas medidas governamentais ao longo da pandemia, como o reforço da remuneração da atividade adicional e maior facilidade na contratação de profissionais, até aqui bloqueadas, que foram benéficas. E considera que o desafio é reforçar o SNS. “São medidas que sobretudo gostaria de ver tornarem-se intrínsecas ao sistema e ficar para além da pandemia. O plano Marshall permitiu alterações estruturais em muitos países da Europa, na indústria, na recuperação económica. Gostaria que para o SNS fosse a mesma coisa. Que muitas das medidas excecionais que tivemos por causa da pandemia se tornassem definitivas.”