Decadência e bom gosto

O amarelo da capa, além de produzir uma sensação agradável, era adequado a um clássico romano recheado de episódios picantes.

A última livraria em que entrei antes do início deste confinamento foi a Ler Devagar da LX Factory, em Alcântara, onde não ia há uns bons anos. Numa breve ronda pelas obras em destaque deparei-me com duas ou três que não me importaria nada de ter na minha biblioteca, mas que, esgotado o plafond do mês, tiveram de ficar para outra altura. E nem cheguei a subir ao piso de cima, com as suas estantes industriais.

Estava quase a dar por terminada a ronda quando um último olhar me revelou uma belíssima capa amarela. Uma cor curiosa: muito usada e apreciada na Antiguidade, no final da Idade Média foi, segundo o historiador das cores Michel Pastoureau, conotada com a avareza, a inveja, a mentira, a traição. O Concílio de Latrão de 1215 associou-a aos judeus (algo que perduraria até ao século XX) e na República de Veneza uma decisão do Conselho dos Dez obrigava as cortesãs a usarem um xaile dessa cor para se distinguirem das mulheres honestas.

A proximei-me do espécime em questão. Tratava-se do Satyricon, de Petrónio, numa edição de bolso da Cotovia, maneirinha e com muito bom aspeto. O amarelo vivo da capa, além de contribuir para essa impressão agradável, era adequado a um clássico romano recheado de episódios picantes.

A discussão continua em aberto, mas julga-se que Petrónio Arbiter seria uma figura próxima de Nero. O historiador Tácito descreveu-o como um homem «voluptuoso, cheio de refinamento e despreocupado», algo que a sua escrita parece comprovar. Caído em desgraça junto do imperador, antes de se suicidar teria deixado registada a depravação em que Nero vivia mergulhado. De resto, viria a ser no Satyricon que muitos baseariam os seus comentários sobre os costumes decadentes daquela época.

Alguns dias depois da visita à Ler Devagar, pesquisando numa plataforma online, encontrei um exemplar deste mesmo livro, como novo, mas na versão de capa dura, pelo mesmo preço da de bolso.

Normalmente – e penso que será o que se passou neste caso –, as editoras começam por lançar o livro em capa dura, mais ‘luxuoso’ e com um preço a condizer. Se a procura o justificar, colocam mais tarde no mercado uma versão económica – aquilo que no mundo anglo-saxónico é conhecido como o paperback, um livro barato, despojado e quase descartável.

Estando ambas ao mesmo preço, entre a edição ‘rica’ de capa dura e a edição ‘pobre’ de capa mole qualquer outro, em princípio, não teria hesitado. Pois eu fiquei dividido. Sempre apreciei as edições despretensiosas, desde que bem feitas, como esta. Além disso, a capa mole_ocupa menos espaço e permite alinhar os livros na estante numa sucessão compacta e sem irregularidades.

Evidentemente a capa dura também tem as suas vantagens. Não é apenas uma questão de estatuto ou pomposidade: é também mais durável. E talvez por isso não haja nada pior do que um mau livro disfarçado numa edição de capa dura a armar ao pingarelho… Seja como for, no caso do Satyricon essa questão não se colocava, e acabei mesmo por optar pela capa dura. Um clássico sempre é um clássico e a veste um pouco mais solene assenta bem a Petrónio Arbiter, que todos consideravam um árbitro do bom gosto e um modelo de elegância.