Vamos ter saudades dela

Diga-se o que se disser, seja-se de que quadrante político se for, independentemente do país em que se nasceu, vive ou trabalha, seja por esta, por aquela ou por aqueloutra razão, com ou sem ela, ainda vamos ter saudades da primeira mulher a ocupar o cargo de chanceler alemã. Angela Merkel é, inquestionavelmente, uma grande…

Diga-se o que se disser, seja-se de que quadrante político se for, independentemente do país em que se nasceu, vive ou trabalha, seja por esta, por aquela ou por aqueloutra razão, com ou sem ela, ainda vamos ter saudades da primeira mulher a ocupar o cargo de chanceler alemã. Angela Merkel é, inquestionavelmente, uma grande líder da Alemanha unificada e uma grande líder da União Europeia.

Sem Merkel, a Europa não seria hoje o que ainda é. E a Alemanha também certamente seria muito diferente. Para pior.

Quando em 2015 – já com 10 anos à frente do Governo federal alemão –, num programa televisivo, Merkel respondeu a uma jovem palestiniana oriunda de um campo de refugiados no Líbano que a Alemanha não poderia receber todos os milhões de refugiados vindos do Líbano, de África e de outras partes do mundo e que alguns teriam mesmo de partir, caiu-lhe tudo em cima. A jovem palestiniana não conteve as lágrimas e Merkel foi acusada de insensibilidade, insensatez, até arrogância e xenofobia.

No vídeo, que num ápice se tornou viral, vê-se Merkel, porém, a reagir com candura quando se apercebe de que a jovem palestiniana irrompera num pranto. Saiu do palanque e dirigiu-se-lhe para lhe dar um carinho e murmurar-lhe palavras de conforto, elogiando-lhe a coragem.

Ainda assim, as ‘redes’ não lhe perdoaram.

Angela Merkel apenas dissera o óbvio. De forma franca e frontal, sem rodeios nem subterfúgios politicamente corretos, demagógicos e falsos, daqueles próprios dos políticos de verbo de encher, que só pensam em ficar bem na fotografia, ganhar uns pontinhos nos estudos de opinião ou uns likes de néscios influencers e dos seus rebanhos de seguidores.

Por detrás da frieza e dureza de uma grande líder, que nasceu na República Federal da Alemanha, mas cresceu e formou-se do outro lado da cortina de ferro, na comunista República Democrática Alemã, para onde o seu pai, pastor luterano, foi enviado, está a mulher que não foi mãe, mas que ficará para a história da União Europeia como se o tivesse sido nos 16 anos de liderança e fortalecimento do eixo franco-alemão que, no entretanto, enfrentou as maiores e mais ameaçadoras crises para um futuro comum.

Se a União Europeia resistiu, incluindo ao Brexit, em enorme medida deve-se a Angela Merkel.

Como a crise dos refugiados só será possível de ultrapassar se os líderes europeus tiverem o pragmatismo e o bom senso de Merkel, ainda que criticada tanto pela esquerda sem estratégia ou de um humanismo exacerbado e inconsequente como pelos movimentos extremistas de direita radical e xenófona.

 

Merkel é um caso muito singular. Ainda na RDA, no final dos anos 70, tornou-se na única mulher a trabalhar no Instituto Central de Físico-Química da Academia de Ciências de Berlim. Após a queda do muro de Berlim, em 1989, envolveu-se ativamente na luta pela democratização da RDA, integrou-se no partido Despertar Democrático e foi porta-voz adjunta do Governo saído das primeiras (e únicas) eleições democráticas no país. Nas eleições seguintes, já com a Alemanha reunificada, foi eleita para o Bundestag, em 1990, e no ano seguinte passou a ser a mais jovem ministra do Governo de Helmut Kohl, com a tutela das pastas da Mulher e da Juventude. Anos mais tarde, assumiria o Ambiente e a Segurança Nuclear e ascenderia a secretária-geral da CDU. Foi neste cargo, quando rebentou o escândalo do financiamento ilegal dos partidos, que enfrentou o todo-poderoso Kohl, denunciando o seu envolvimento no caso e exigindo que abandonasse a política. Imediatamente a seguir, ascenderia à liderança da CDU e, passados cinco anos, em 2005, acabaria por chegar a chanceler.

A sua vida dará com toda a certeza muito mais do que um filme.

Como um bloco de gelo inquebrável perante líderes como Vladimir Putin ou Viktor Orbán, que não se deixou manietar pela sedução de Barack Obama ou Emanuel Macron, nem cedeu ao populismo de Boris Johnson ou Donald Trump, Angela Merkel não será fácil de substituir. Ela que tão bem soube traçar um rumo para a Alemanha e para a Europa e que sempre soube resistir e ultrapassar todos os obstáculos.

O final da sua última presidência da União Europeia, em dezembro passado, reunindo consensos que já se julgavam impossíveis, é o melhor exemplo.

Uma mulher insensível e arrogante jamais teria a expressão, e o olhar, que Merkel teve quando ofereceu à nova filha de Nicholas Sarkozy um ursinho de peluche (Teddy Bear) como aqueles que eram feitos na antiga fábrica da Steiff na vila beirã de Oleiros.

Como jamais cuidaria de não deixar sem resposta aquela idosa francesa que insistia em perguntar-lhe se ela era a mulher do Presidente Macron, ali ao lado. Por três vezes a senhora a questionou e por três vezes Angela Merkel deu a mesma resposta, mantendo o tom baixo e discreto de quem procurava evitar os microfones e as câmaras e, por isso, aproximando-se o mais possível do ouvido da idosa gaulesa: «Eu sou a chanceler da Alemanha».

É verdade! Nem os alemães nem os europeus o vão esquecer nunca. E ainda todos haveremos de ter saudades dela.

Esperemos que não. A bem de todos.