Estamos quase a atingir a impunidade de grupo

O português é aquele que diz mal do chefe, mas se o chefe entra na sala se desfaz em vénias. Quando o chefe sai da sala, diz ao colega: «Viste como eu olhei para o gajo? Qualquer dia digo-lhe umas quantas». Somos assim, temos um longo passado pela frente e estamos presos nesta impotência. 

Por João Maurício Brás

Zangamo-nos com os europeus do norte quando nos chamam nomes. Chamam-nos os PIGS e têm alguma razão e por vários motivos. Em algum país da Europa se passou o mesmo que em Portugal com a vacinação? Os casos sucessivos expõem um tipo de comportamento e mentalidade que nada tem a ver com sociedades evoluídas com sentido cívico, responsabilidade e escrutínio. 

Se é assim com as vacinas, imaginemos quando chegar a célebre bazuca. O somatório de casos reitera os eternos hábitos: o esquema, o favor, a esperteza, o amigo, o mostrar que se pode, o nunca ninguém é responsável por nada, a culpa é sempre do outro. Das pastelarias às centenas de vacinas que descongelam, ao não se ter comprado tudo o que era necessário, às piadas do responsável pelo plano da vacinação, aos critérios, tudo envergonha. Quando neste país algo tem de funcionar, ou não funciona ou funciona mal. E nunca há responsáveis, nem consequências, tirando umas figuras secundárias mais tarde agraciadas pelo sacrifício. É verdade que estamos ocupados com o problema premente do fascismo e a urgência da eutanásia. Por falar em fascistas, a Áustria que nos vai ajudar não tem no governo quem liderou coligações com a extrema-direita? 

O que nos aconteceu? Porque ficámos assim? É tudo vergonhoso, mas todos têm uma desculpa. Somos um povo de inimputáveis. Os nossos comportamentos, o espírito de clã, a falsa indignação, a falta de sentido ético, a ausência de organização, planificação, a falta de sentido de dever e responsabilidade já são quase genéticos. Este episódio das vacinas é apenas mais um capítulo, como os casos de Tancos, do BES, de Pedrógão, os milhentos casos judiciais, do nosso fiasco cultural. Dizia João César Monteiro que Portugal é um buraco onde se cai e um cu de onde nunca se sai.

Um dos grandes problemas de Portugal desde o século XVII, como explicou Antero, foi um tipo de elites que predominou. Quem sabia era o senhor padre, o regedor, o cacique, o doutor. Eça e Camilo retrataram esse ethos que é ainda o nosso, embora com as vestes do século XXI. Essas elites, num país iletrado (ainda hoje o somos, escolaridade formal não significa literacia) nunca nos deixaram ser autónomos, exigentes e responsáveis. O português habitou-se a que pensem por ele. Depois, às vezes, com um copo a mais, revolta-se à porta do café, no centro comercial, no jantar com os amigos e nas redes sociais. 

O português é aquele que diz mal do chefe, mas se o chefe entra na sala se desfaz em vénias. Quando o chefe sai da sala, diz ao colega: «Viste como eu olhei para o gajo? Qualquer dia digo-lhe umas quantas». Somos assim, temos um longo passado pela frente e estamos presos nesta impotência. Ainda esta semana ficámos a saber que Santana Lopes regressa como candidato pelo PSD. Tudo boas pessoas, mas sempre os mesmos. Somos tão poucos que mesmo os diabolizados voltam como grandes esperanças. Cavaco é hoje um estadista, o que não se disse do homem? Passos é um Dom Sebastião, o que não foi amaldiçoado? Eanes é agora uma figura mítica, o que não foi vilipendiado? E tantos outros, figuras que tiveram o seu tempo, com qualidade e defeitos, mas que regressam de quando em vez como o futuro, esquecem-se que são apenas o passado. Em breve teremos  também de novo Portas, Barroso, etc.. 
Não haverá gente ‘nova’, novas ideias, novos modos de fazer política e pensar Portugal?