Viajar no tempo

Por Pedro Ramos Queridas Filhas, Um aspeto fascinante das finanças é que nos permitem viajar no tempo. Não como se vê nos filmes, mas através dos nossos projetos. Isto é possível através de uma ‘dotação’.  O que é uma dotação? É um fundo de poupanças investido que gera rendimento anual. Uma parte desse rendimento é…

Por Pedro Ramos

Queridas Filhas,

Um aspeto fascinante das finanças é que nos permitem viajar no tempo. Não como se vê nos filmes, mas através dos nossos projetos. Isto é possível através de uma ‘dotação’. 

O que é uma dotação? É um fundo de poupanças investido que gera rendimento anual. Uma parte desse rendimento é usado para financiar o orçamento anual de projetos. Através de uma dotação podemos lançar projetos que têm impacto mesmo depois da nossa morte. Se for bem estruturada, uma dotação bem investida pode não só durar como crescer por um tempo indeterminado, teoricamente para sempre!

Um exemplo em Portugal de uma instituição financiada por uma dotação é a Fundação Calouste Gulbenkian. Nos Estados Unidos, várias fundações (como a Carnegie) e Universidades (como Harvard, Yale e Princeton) financiam-se com o auxílio de dotações.

A primeira dotação que devem constituir são as poupanças para a reforma. A vida dá muitas voltas e mesmo com reformas do Estado ou de empresas, é prudente construir a própria reforma por meios próprios. Adicionalmente, a independência financeira dá paz de espírito e confiança para abraçar projetos até aos últimos dias. Que melhor forma de investir na nossa qualidade vida? 

A segunda dotação a constituir será o suporte para o começo de vida dos vossos filhos. Garantir uma situação financeira que lhes permite educarem-se e lançarem projetos sem medo. Claro que todos nós tentamos deixar o máximo que podemos, e por vezes não conseguimos deixar o suficiente. Mas se tivermos a sorte de poder deixar mais do que os filhos precisam, eu recomendo limitar a herança. Não queremos que os filhos tenham tanto dinheiro que possam viver a vida sem fazer nada: corrói o espírito deles e a capacidade de se realizar encontrando a própria voz. Imagino que nem todos concordarão comigo neste ponto, mas este é um tema para refletir. 

Por último, se ainda tiverem recursos financeiros, podem lançar uma dotação para financiar um projeto que cumpra a vossa vocação e sonhos. Este fará parte do vosso legado. Pode durar para além da vossa vida. Há várias áreas que necessitam da vossa criatividade e recursos: caridade (amor e cuidado ao próximo); educação; investigação científica e artística; cultura; sociedade; direitos civis entre tantos outros.
Como funciona uma dotação? Em termos simples, começa com uma doação e investimento de ativos na constituição do capital da dotação. Este pode ser adicionado de doações futuras. 

O capital é investido em vários ativos de forma a diversificar os riscos. Em função do tipo de ativos investidos, é estimado o retorno médio esperado para a dotação. 

A partir do retorno estimado é definida a percentagem de ativos da dotação que será gasto a cada ano. Nesta decisão influenciam vários fatores: a) duração da vida da dotação pretendida (se for para sempre não se poderá gastar mais do que o retorno anual); b) taxa de inflação esperada (o poder de compra da dotação decresce ao longo dos anos com a inflação); c) futuras necessidades de despesas assim como futuras contribuições adicionais para a dotação. 

Vamos fazer um exemplo simples para ilustrar estes conceitos.  A nossa família constitui uma dotação de 1000 euros para apoiar a educação de órfãos. Fazemos investimentos diversificados que geram um retorno esperado médio de 5% por ano. Estimamos uma inflação de 1% por ano. Com base nestes dados definimos a política de distribuir 4% da dotação por ano. A tabela 1 mostra a evolução da dotação e distribuição nos primeiros 5 anos. (Ver tabela no final do texto).

A primeira observação é que a prática é mais difícil que a teoria. A pesar do retorno de facto ter dado uma média sensivelmente superior a 5% por ano, este flutuou bastante. Com isso, a dotação teve períodos de queda. Por exemplo no final do ano 1 era de 1060 euros, mas no final do ano 4 era de apenas 1040 euros. 

A dotação precisa de ter um acompanhamento anual profissional para prevenir que se gaste mais do que os retornos, pondo em causa futuras distribuições.

A segunda observação é de que a distribuição pode ter de ser reduzida em anos futuros, se os retornos desapontarem e a política de distribuição for tão agressiva que deixe pouca margem de manobra em anos de baixos retornos. Isto é critico quando se define os beneficiários da distribuição. Se, por exemplo, os órfãos necessitarem pagamentos constantes para continuar os estudos, a política de distribuição tem de ser mais conservadora para criar reservas necessárias para anos de baixos retornos. Se, por outro lado, os órfãos tiverem outras fontes de receitas, então a política de distribuição pode ser mais agressiva. Sugiro que refaçam os cálculos da tabela 1 assumindo uma distribuição de 6% da dotação para ver o impacto ao fim de 5 anos.

Espero que estejam inspiradas a partilharem a boa fortuna com outros através de dotações. Esta prática está bem desenvolvida nos EUA e os portugueses têm muito a ganhar seguindo esse exemplo. Se uma dotação resultar da leitura desta carta, já terá valido a pena escrevê-la.