A “missão” da ONU

Como todas as grandes organizações não privadas, a ONU engordou, burocratizou-se e tornou-se em boa parte um elefante branco.

A ONU foi criada em 1945, após o fim da Segunda Guerra Mundial, com o objectivo de arbitrar os conflitos entre os Estados e evitar um novo conflito. E não será honesto desvalorizar o seu papel. Mas, como todas as grandes organizações não privadas, engordou, burocratizou-se e tornou-se em boa parte um elefante branco. O testemunho que a seguir apresento mostra de forma eloquente esta triste realidade. 

«Na minha primeira missão da ONU/ /UNPROFOR, Croácia, fui 2º comandante do sector Sul da Polícia da ONU. Estava-se em 1992/93 e rugia a guerra entre croatas e sérvios da Krajina.
O chefe das operações era um norueguês, já muito experimentado noutras missões, homem de personalidade muito forte, determinado, inteligente, hiperactivo profissionalmente, possuído duma estranha obsessão: a substituição sistemática de polícias da ONU, não nórdicos, apenas e só por nórdicos – noruegueses, suecos, dinamarqueses e finlandeses. 

Para lá das suas qualidades, era uma pessoa de mau carácter e impiedosa, quiçá sádica. 
De qualquer modo, dado o facto de o chefe máximo da Polícia da ONU ser norueguês e amigo pessoal dele, era preciso ter muito cuidado com o sujeito, pois era perigoso, muito perigoso. De um dia para o outro, despromovia funcionalmente quem lhe apetecia; por isso, tive de ter com ele uma relação inteligente.

Os nossos gabinetes eram lado a lado, e estávamos regularmente juntos na tomada de decisões e na gestão operacional da Polícia, naquele contexto de guerra, em que superintendíamos 14 esquadras internacionais… 

Depois de estar uns tempos na missão, reparei que ele nunca produzia qualquer papel escrito fosse para o que fosse – directivas, planos, pareceres, propostas, relatórios, etc. E um dia disse-lhe:
– Tens de documentar por escrito toda a tua actividade… (coisa básica e elementar). E ele retorquiu-me:
– Sousa: nunca mas nunca! Tudo o que escrever na ONU, seja o que for, pode virar-se contra mim, mais cedo ou mais tarde… Na ONU, nunca… E tu faz o mesmo. 

Foi a minha 1ª lição da ONU.

Passou mais algum tempo e reparei que, sendo ele o chefe das operações, nada fazia minimamente digno de ser considerado como tal; mas exibia permanentemente um ar ocupadíssimo, apressadíssimo, com pastas debaixo do braço, a caminho nunca se sabia de e para onde; e passava o tempo a propor mudanças de polícias, viaturas e mobiliários de umas esquadras para outras. Coisas que nem sequer lhe competiam… 

Num outro dia disse-lhe: 

– Andas sempre tão ocupado com visitas às esquadras, mudanças de polícias, viaturas e mobílias, mas as actividades operacionais que te competem não as executas. Não percebo… 

Responde-me ele: 

– Bem, Sousa, eu farto-me de trabalhar para não fazer nada e não deixar que nada se faça. Regra sagrada da ONU. Faz o mesmo. Estamos aqui apenas «to fly the UN flag» (para voar a bandeira da ONU), e parecer que fazemos coisas, nada mais. 
Foi a minha 2ª lição da ONU.

Mais tarde concluí que os reais agressores e criminosos da guerra, e as vítimas da mesma e os seus iniciadores, eram exactamente os opostos dos sistematicamente acusados pelos mass media e pela ONU. A narrativa oficial e dos media era falsa! Confuso, perguntei ao norueguês (que andava no terreno e via o mesmo que eu):

– Tu sabes melhor do que eu que nesta guerra os sérvios são as vítimas e os criminosos de guerra e os agressores são os croatas… Por que é que dizes sempre o contrário?

Ele riu-se e disse-me:

– Sousa, és muito ingénuo! Não ouças nada, não vejas nada, não digas nada, não penses nada do que me acabaste de dizer… Tenta perceber nos papéis oficiais da ONU qual é a narrativa oficial da missão e da guerra, e é isso que tens de dizer e pensar… O que se passa no terreno não é da nossa conta. Deixa correr… 

Foi a minha 3ª lição da ONU…

E depois, ao longo dos anos, a realidade que eu vivi confirmou-me tudo o que ele me ensinou… Quando ele se foi embora, disse-lhe numa festa de despedida: 
– Obrigado, amigo. Tu foste para mim uma lição de vida e do realismo actual, da verdade dos tempos que correm, e da ciência de viver e sobreviver… em particular, na ONU. 

Partiu e fui encontrá-lo de novo em Timor, oito anos mais tarde. Sempre igual a si próprio.

Lamentavelmente, não só a ONU é uma organização que vive muito das aparências – e da necessidade de manter as aparências. Um ex-chefe do Estado português tinha a seguinte máxima: «O que é preciso é manter a bola a bater». É isso: manter a bola a bater. Fazer, resolver problemas, pouco importa.