Governo ainda não tem plano para desconfinar. “Precisamos de um azimute”, defende investigador

Primeiro-ministro pediu trabalho de casa aos cientistas e disse que era cedo para falar de desconfinamento. A descida abrupta de contágios acabou por tornar o assunto urgente e, até aqui, o Governo não tinha traçado metas. Indicadores epidemiológicos já colocados em cima da mesa poderão ser atingidos em breve; o problema são os cuidados intensivos,…

Foram muitas as propostas ao longo da semana, mas a pergunta de fundo mantém-se: quando é que o país irá desconfinar? O primeiro-ministro disse esta semana que seguramente não será ainda nos próximos 15 dias e apontou para março ainda com o país fechado. «Não é o momento de discutir confinamentos totais ou parciais». A descida abrupta de casos depois do fecho das escolas a 21 de janeiro acabou no entanto por precipitar a discussão e até aqui o Governo não tinha traçado linhas vermelhas nem havia um plano, como agora continua sem estar fechado.

Segundo o Nascer do SOL apurou, depois de o primeiro-ministro ter pedido formalmente aos cientistas que fizessem esse trabalho de casa e chegassem a algum consenso, os peritos ouvidos regularmente no Infarmed deram andamento a esse trabalho e uma ou mais propostas deverão ser entretanto analisadas. O tema deverá ser o centro da próxima reunião no Infarmed, à partida a 23 de fevereiro. E o país deverá chegar a essa altura já com os indicadores epidemiológicos que têm sido apontados como decisivos atingidos, isto se se mantiver o efeito de confinamento que se tem verificado, com uma redução de casos para metade agora calculada em oito dias, uma das descidas mais fortes de casos alguma vez registadas no país. Segundo o último relatório semanal do Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge, publicado ontem, o RT entre 3 e 7 de fevereiro situou-se em 0,73, o valor mais baixo de sempre no país, sendo de 0,68 na região Norte, 0,7 no Centro, 0,75 na região de Lisboa e Vale do Tejo, 0,77 no Alentejo e 0,75 no Algarve. O_que significa que, mantendo-se esta trajetória, Portugal pode chegar já na próxima semana ou na seguinte ao patamar dos 2000 casos diários – uma das linhas traçadas no Infarmed.

Contágios já voltaram ao nível do Natal

Carlos Antunes, investigador da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa e Vale do Tejo que faz a modelação da epidemia com o epidemiologista Manuel Carmo Gomes, que esta semana no Infarmed deu o pontapé de saída da discussão pública das linhas vermelhas, e assumiu em entrevista ao i que receou que estivesse a entrar na mesma «rotina» quando não é altura de «deitar foguetes» mas de preparar os próximos passos para evitar um quarta vaga que poderia ser igual ou pior que esta, explica que neste momento em termos de indicadores epidemiológicos as projeções são de uma franca melhoria. «Pensando em termos de novos contágios, as projeções indicam que atingimos hoje (ontem) o nível de incidência do período anterior ao Natal, cerca de 3000 novas pessoas a ter sintomas», diz ao Nascer do SOL o investigador.

Durante a semana o Presidente da República falou na necessidade de chegar com menos de 2000 casos até à Páscoa, mas as projeções sugerem agora que isso poderá ser atingido muito antes, entre esta semana e a próxima (a Páscoa é a 4 de abril). O problema, e esse só deverá ser ultrapassado em março, são os cuidados intensivos, em níveis críticos – e que obrigaram que janeiro fosse um mês com cirurgias programadas praticamente paradas no SNS – e onde é projetada uma descida lenta.

Aliás esta sexta-feira voltou a haver um aumento dos doentes internados em UCI depois de dias de descida, sinal de que as admissões nas unidades de cuidados intensivos voltaram a ser superiores às saídas. Os intensivistas, desde logo o presidente do colégio de Medicina Intensiva da Ordem dos Médicos, apontam como linha vermelha para o desconfinamento haver menos de 250 doentes em medicina intensiva por covid-19. E esse debate entre médicos hospitalares e epidemiologistas está também a ocorrer longe dos holofotes. Carlos Antunes sublinha que as projeções indicam que no final de fevereiro, com a tendência atual, deverá haver menos de 400 doentes covid-19 em UCI mas só no fim de março se fica abaixo dos 300, o patamar considerado seguro para poder retomar resposta aos outros doentes com segurança nos cuidados intensivos.

‘A pandemia ganha-se na comunidade’

A preocupação que entretanto começa a surgir entre os especialistas é que se nos hospitais a situação se mantém complexa e há muito a recuperar – não havendo um plano nacional para essa retoma – os casos vão continuar a diminuir e a perceção do risco na população, que reduziu mobilidade praticamente para os níveis do confinamento de março, pode diminuir também, levando as pessoas a começar a relaxar cuidados antes do tempo.

Por um lado isso leva a que não se descarte começar a desconfinar mais cedo, gradualmente, mas de forma programada, seguindo indicadores concretos. Esta semana, numa audição no Parlamento, o médico Filipe Froes propôs o desconfinamento por regiões e por concelhos com uma situação epidemiológica mais favorável, propondo por exemplo um início de reabertura de alguns setores como creches e pequeno comércio quando se ficar abaixo dos 480 casos por 100 mil habitantes. Permitiria envolver a comunidade nos objetivos. «A pandemia ganha-se na comunidade e não nos hospitais», defendeu, considerando também que uma das falhas ao longo dos últimos meses foi não ter sido criada uma comissão de aconselhamento científico.

O apelo de António Costa aos cientistas acabou por ser visto como algo contraditório, dado o formato que foi adotado pelo Governo nas reuniões do Infarmed. Pedro Simas, virologista e investigador do IMM, considera que muitas das preocupações que existiam nos últimos meses já eram consensuais em termos científicos: a necessidade de testar mais, aumentar a capacidade de rastreio – que colapsou nesta vaga, sobretudo em Lisboa – e monitorizar os indicadores para intervir.

Para o investigador, é premente pensar o desconfinamento. E admite que existe o risco de as pessoas começarem a relaxar cuidados antes do tempo se não perceberem o que está em causa. «Entendo que a prioridade agora seja manter o confinamento e não induzir os portugueses em erro ou dar-lhes excesso de confiança. Temos de continuar nesta linha para atingir as metas que queremos. Mas é importante os portugueses perceberem quais são as metas e não relaxarem antes de tempo independentemente daquilo que o Governo lhes diz ou permite. Nesta fase não é de todo prematuro falar nas metas. E consenso científico para essas metas já existe há muitos meses e já existia antes desta terceira vaga. A meta do RT, a meta dos infetados por dia, a meta dos testes positivos por dia face ao total, o número de internados nos hospitais e nos cuidados intensivos. Todos os critérios já existiam, só não existiam linhas vermelhas e isso é importante para as pessoas perceberem que é preciso continuar confinados como estamos».

Simas considera pouco prudente que sem metas definidas publicamente se esteja já a falar da Páscoa. «Percebo que o objetivo é passar uma mensagem forte, mas creio que seria melhor para adesão da população as pessoas perceberem a lógica e que o que determina o desconfinamento são estas linhas vermelhas. Estar a dar perspetivas temporais não é prudente, traz uma carga de stresse muito grande para as pessoas. É como estarmos no meio de mar sem azimute. Temos de continuar confinados exemplarmente, mas temos de ter um azimute, saber para onde vamos. O vírus não sabe o que é o Natal e não sabe o que é a Páscoa, se as pessoas não tiverem cuidados os casos aumentam».

Risco de 4.ª vaga nunca foi tão grande

Para Pedro Simas, com a atual trajetória de casos, dentro de 15 dias poderia já ser possível alguma reabertura e explica que a questão continua a ser a mesma que em abril: o confinamento não vai erradicar o vírus e possivelmente chegar-se-á a um ponto de planalto em que deixa de surtir efeito, que acredita que poderá ser em torno dos 1500 casos diários como no verão não foram abaixo dos 300.

Nessa altura, deve iniciar-se o desconfinamento, defende, alertando que com a disseminação que tem hoje, a nível nacional e a nível internacional, «o risco de uma quarta vaga nunca foi tão grande», mas isso é válido tanto agora, como em março e abril, porque há sempre casos assintomáticos.

Para o investigador, a preocupação é mobilizar a sociedade para adotar comportamentos seguros enquanto não se atinge a «imunidade dos grupos de risco», ou seja, a vacinação dos mais vulneráveis, diz. A menos que se ficasse confinado até junho, o risco de uma nova vaga com efeitos graves nos internamentos e mortalidade será sempre grande e esses devem ser os grupos a proteger, insiste, defendendo que também já existe consenso científico sobre a possibilidade de espaçar doses para vacinar mais pessoas dos grupos vulneráveis e essa é uma decisão que não esta do lado dos cientistas.

Resolução rápida dos rastreios pendentes é uma "fantasia", diz Ricardo Mexia

Ricardo Mexia, presidente da Associação Nacional de Médicos de Saúde Pública, defende igualmente que são precisas metas e um reforço da capacidade de rastreios para acompanhar o aumento de testagem expectável com a revisão das normas da DGS, considerando que a melhoria referida esta semana no Parlamento pelo Secretário de Estado resultou de uma mudança da metodologia na contabilização. «Não é crível que tivéssemos acumulado 56 mil inquéritos pendentes e que numa semana tivéssemos passado para 4 mil. Naturalmente reduziu a incidência, mas não podemos ter a fantasia de que os problemas de rastreio ficaram resolvidos», alerta.

O médico defende também uma comunicação clara para evitar que os comportamentos comecem a mudar. «Sabemos que até ao fecho das escolas as pessoas já tinham tido um comportamento diferente do de março por isso é fundamental que saibam com o que contar. Acredito que daqui a 15 dias algumas atividades já possa ser consideradas, mas é algo que terá de ser avaliado permanentemente. Isso é verdade hoje como era no passado, o que mudou foi que tivemos um janeiro desastroso. É como se diz, casa roubada, trancas à porta».