David Olagnier: “Na Dinamarca as pessoas gostam de ficar em casa”

David Olagnier é investigador em imunologia e doenças infecciosas na Universidade Aarhus. Francês expatriado na Dinamarca, no ano passado escreveu um artigo sobre as ‘Grandes lições de um pequeno país’ no combate à covid-19. Acredita que a testagem não explica todo o sucesso do país na resposta à pandemia.

A capacidade de testagem na Dinamarca tem sido dada como exemplo em Portugal. Curiosamente não o referiu no seu artigo.

Com certeza que é importante, mas na altura quisemos refletir um pouco sobre o que se passa diferente no país que confinou cedo e conseguiu ter a epidemia relativamente controlada. Sou francês, conheço também a realidade do Canadá. E penso que há uma questão muito cultural. Veja-se o lockdown. As pessoas na Dinamarca gostam de estar em casa. Faz parte da maneira como vivem.

Escreve que o confinamento é quase uma continuação da vida normal.

Uma pessoa por regra sai do trabalho às 15h, 16h e vem para casa, faz a vida em casa. Claro que o tempo ajuda, às vezes é quase de noite. Sentimos a falta de socializar, de ir a um restaurante, a um clube, mas estamos habituados a esta rotina.

Têm até um conceito, o hygge.

Sim, faz muito parte da mentalidade dos dinamarqueses. Outro fator que acho importante é a confiança. As pessoas confiam no que os políticos dizem. Confiam umas nas outras. Certamente que já ouviu aquele relato de deixar os bebés nos carrinhos à porta dos restaurantes. É mesmo assim. E as pessoas perguntam ‘não se preocupam que alguém leve as crianças’? Por que é que alguém levaria as crianças? Tem muito a ver com a educação. Vejo isso pelos meus filhos, começa a ser incutido muito cedo.

Como?

Existe uma relação muito empática. As crianças, os jovens trabalham em pequenos grupos. Não sei se é assim em Portugal, em França pelo menos não é. Existe uma forte partilha de tarefas, de responsabilidades. Na pandemia as pessoas aceitaram que as medidas eram necessárias e que era preciso reduzir contactos. Existe uma decisão coletiva. Em França vejo Emmanuel Macron a tomar decisões de forma isolada, às vezes sem ouvir os ministros, isso aqui não acontece.

Já haver uma cultura de teletrabalho ajudou? Há apoios para isso?

Sim, também. Aqui qualquer pessoa sabe que pode pedir ao patrão para ficar a trabalhar de casa por um qualquer motivo, isso não é um problema. Em França não é nada assim – só numa situação limite é que se fica em casa. Existe uma relação de confiança mais transversal. Por exemplo, se um empregador diz que vai renovar o contrato que está acabar uma pessoa acredita antes de ver o contrato assinado. Em França ia querer ter o papel assinado. Claro que para algumas pessoas é mais difícil, esta situação tem um impacto maior, mas a maioria consegue adaptar-se. Os apoios variam. Por exemplo a minha mulher é consultora e a empresa paga o seguro da casa.

Agora começam a surgir protestos em Copenhaga contra o prolongamento do lockdown. É menos consensual?

Claro que existe um impacto económico nas medidas e isso tem de ser tido em conta. Não sei se aguentaremos outro lockdown. Estamos com 300 casos diários, muitas pessoas questionam se é preciso continuar com restaurantes fechados, com o comércio fechado, com tudo fechado.

Quantos casos tiveram no pico?

No pico em dezembro foram 4 mil, o que para um país do tamanho da Dinamarca não é assim tão pouco. O confinamento começou em dezembro. Agora foi prolongado até dia 28 mas abriram as creches e escolas até ao 4.º ano. Está a nevar, as crianças podem ir à rua brincar, mas estamos em casa desde dezembro. Mas ainda assim acho que as pessoas continuam a confiar na estratégia.

Descreveu-a no ano passado ‘como agir rápido e em força’, que é o está a ser defendido agora por alguns investigadores na Europa: não deixar os casos subir muito. A Dinamarca tinha um sistema de classificação por níveis de risco. Sabiam os critérios e que poderiam ter de confinar de novo?

Isso parece-me outro fator importante: a transparência. Isso esteve sempre em cima da mesa. Qualquer indicador que queira saber sobre a covid-19 e sobre a epidemia consegue encontrar online.

Mas pondo numa balança, sente que a confiança pesa mais no controlo da epidemia do que testagem massiva?

Tudo é importante mas se calhar sim ou é tão importante. Quando a primeira-ministra Mette Frederiksen anunciou o primeiro confinamento foi a uma quarta-feira para entrar em vigor numa segunda-feira. Pediu para as pessoas se possível não levarem as crianças para a escola nos dias seguintes. Tenho dois filhos e nos dias seguintes não havia crianças nas escolas. Em França o presidente Macron fez um apelo semelhante. Estava um dia de sol e vimos as ruas de Paris cheias. Isso aqui não acontece.

São um dos países europeus que mais testa, fazem cinco vezes mais testes por mil habitantes do que Portugal. Como funciona?

Uma pessoa que tenha sintomas ou que tenha estado com alguém infetado vai a um site, coloca um número que toda a gente tem como se fosse o número da segurança social (NemID) e marca o teste e hora num dos locais disponíveis.

Sem prescrição?

Sim.

Isso foi bem aceite pelos médicos?

Por que é que não havia de ser? Se uma pessoa tem sintomas a forma de saber se está infetada é fazendo o teste e depois segue as orientações de isolamento.

Aqui colocou-se a questão de os testes serem um ato médico.

Isso é como a questão das máscaras, penso que tem a ver com os recursos disponíveis em cada momento e em cada país. Inicialmente as máscaras em França não eram recomendadas, como noutros países, depois passaram ser. Uma situação destas exige recursos, muitos testes, apoios.

E são feitos testes rápidos? Tem-se colocado a questão de serem mais ou menos sensíveis, de poderem induzirem falsa segurança.

Todos os testes disponibilizados gratuitamente são PCR, algumas empresas usam testes rápidos mas nos pontos de testagem são usados PCR. Claro que exige imensos recursos. Por exemplo, nós no laboratório estamos com muita dificuldade em ter reagentes e pipetas para fazer investigação porque os materiais estão todos mobilizados para a testagem.

E já fez muitos testes?

Eu? Nenhum. A minha filha esteve em contacto com uma colega infetada na escola e fez três testes no espaço de semana e meia.

As pessoas podem fazer testes sem ter sintomas, se lhes apetecer?

À partida tem de ser dada uma justificação, que se teve um contacto com alguém infetado, se tem sintomas. Não sei se existe um limite, mas acredito que se uma pessoa de repente fizesse cinco testes seguidos receberia um email a perguntar o que se passava. Está tudo registado. Basicamente através de um número da Segurança Social o Estado tem toda a essa informação. Agora discute-se a questão de ficar registado se a pessoa esteve ou não infetada e mesmo o certificado de vacinação e a lógica é a mesma.

E as pessoas sentem-se confortáveis com isso, não receiam perdas de privacidade?

As coisas já funcionavam assim antes. Se vai ao banco sabem quanto ganha, têm toda a informação sobre si.

Falou da construção da confiança. Por exemplo na vacinação em Portugal temos visto alguns casos de abusos, pessoas que foram vacinadas não pertencendo a grupos prioritários, discute-se a vacinação de titulares de cargos públicos. Têm tido casos desses?

Um jornalista dos EUA fez-me a mesma pergunta ontem. Não. A Rainha, que tem 80 anos, fez a vacina porque faz parte do grupo prioritário pela idade. A primeira-ministra que tem 40 ou 45 anos não vai receber a vacina. Isso não é uma discussão. Bom e se acontecesse seria um escândalo.

Começámos 2021 com a expectativa que seria melhor que 2020. Sendo investigador nesta área, que expectativas tem para este ano?

2021 até agora está a ser pior, pelo menos aqui ainda não saímos de casa. Acho que com a vacinação podemos esperar uma situação mais controlada mas há as novas variantes e temos de pensar que o vírus vai estar connosco para sempre e aprender a viver com ele. Acho que vai haver uma vida antes do corona e uma vida depois do corona e as coisas não vão voltar ao normal assim tão depressa.

Parece pouco otimista.

Não é isso, claro que uma pessoa imagina um estádio cheio, vê um concerto na Netflix e pensa quando é que vamos voltar aí. Temos um vírus pandémico. À medida que houver menos pessoas suscetíveis ficará mais controlado, mas cuidados como a distância, a máscara, vamos ter de manter por mais algum tempo, pelo menos em 2021 penso que continuarão a ser necessários e depois todos os anos teremos uma epidemia, como a gripe.

É outra coisa que escrevia em maio que aí é mais natural: as pessoas não dão habitualmente beijinhos.

Sim, nem apertos de mão. Há uma maior distância física naturalmente do que temos em França, as pessoas não são muito táteis.

O que impressiona mais no vírus?

Acho que a grande discussão que políticos, cientistas, sociedade terá de fazer é como equilibrar a resposta a uma situação destas. 2020 foi uma loucura, o mundo esteve focado no vírus quando há muito mais coisas a acontecer à volta. Sabemos que não é um vírus com uma letalidade assim tão grande e penso que a reflexão a certa altura terá de ser: estamos a tentar salvar todas as vidas da covid-19? Mas quantas vidas vamos perder por outras doenças que não tiveram resposta? Por doenças oncológicas com diagnósticos adiados?