Presidente da AA de Coimbra: “O Estado não se pode alhear da saúde mental dos estudantes”

Aos 24 anos e na reta final do mestrado em Ciências Jurídico-Económicas, João Assunção representa os cerca de 23.500 estudantes da Universidade de Coimbra que, na sua ótica, estão a ser negligenciados pelo Estado.

Por que é que decidiram realizar o inquérito «Impacto do Confinamento na Academia de Coimbra»?

Ao iniciar o segundo confinamento, sabendo a gravidade do primeiro, decidimos antecipar-nos. Queríamos tecer um quadro global do dia a dia do estudante, das suas preocupações, entendendo qual seria o impacto das medidas mais restritivas de circulação. Acreditamos que estes resultados são transversais aos restantes alunos do Ensino Superior. Aquilo que o estudo nos traz é essa mesma capacidade de percebermos quais são os problemas que estão a surgir dentro da academia e reivindicar soluções para os mesmos. O estudo é dividido essencialmente em duas partes, sendo que a primeira diz respeito ao impacto do confinamento nos estudantes e, a segunda, na Associação Académica de Coimbra. E, em cada um destes capítulos, propomos soluções para que os efeitos da pandemia sejam mitigados e seja feita uma preparação do próximo ano letivo. 

A margem de erro é de apenas 3%, podemos falar numa universalização dos resultados?

Tivemos consciência de que queríamos ter representatividade das várias faculdades, dos variados departamentos de cada uma delas, de géneros e nacionalidades. Estas quase 1500 respostas estão divididas também em localização geográfica de origem. 

Recolheram os dados entre os dias 17 e 31 de janeiro. Houve desde logo uma grande adesão ou sentiram necessidade de divulgar constantemente o inquérito?

O confinamento tinha sido decretado dois dias antes. Sentia-se, de facto, o pulsar da academia e as dificuldades que a mesma estava a ter para se adaptar a esta realidade de novo, à transição para a avaliação totalmente digital, estando a decorrer a época de exames de recurso, e havia muita instabilidade emocional e pedagógica. Diria que a partir do segundo ou terceiro dia, já tínhamos as respostas mínimas para concretizar o estudo.

90% dos estudantes sentiram-se recorrentemente fragilizados em termos emocionais. 

A vida normal das academias, a relação interpessoal e a atividade letiva presencial desvaneceram-se. Também importa referir que os alunos que saíram mais prejudicados são aqueles que tinham recorrentemente práticas laboratorial e clínica, como os estudantes de Medicina, que tiveram um último semestre completamente dantesco. Como é natural, isso tem implicações nefastas naquilo que eram as expectativas dos alunos porque ninguém ingressou na faculdade para ter aulas digitais. É normal que, com o prolongar do tempo, o foro psicológico dos alunos fique cada vez mais afetado e possam passar de um estado emocional débil para algo mais grave. Para além disso, existem problemas de saúde física, pois uma grande percentagem afirma que deixou de dormir bem, que se sente ansioso, não consegue ter calma. A saúde mental não é uma ilha na vida dos estudantes porque eles são como que uma esponja de toda a sociedade: tudo aquilo que ela sente, é sentido em dobro pelos estudantes. 

Por outro lado, 80% sentiram que os seus relacionamentos interpessoais são afetados negativamente com muita regularidade durante o confinamento, sendo que, no caso dos estudantes de nacionalidade brasileira, este valor ascende aos 90%.

Quando estamos a falar de estudantes internacionais, é natural que o seu percurso de vida seja diferente. Um estudante nacional, mesmo que deslocado, está a 300 ou 400km, no máximo, do seu núcleo familiar. Quando estamos a falar de um estudante brasileiro, temos um oceano de diferença. Muitos foram obrigados, pelo fecho das fronteiras e pela instabilidade que o país de origem vivia em termos pandémicos, a manterem-se em Portugal e já lá vai quase um ano. Se nos imaginarmos num país estrangeiro onde não conhecemos ninguém, não temos uma rede de segurança interpessoal, os amigos que temos voltaram para as suas casas e ficámos sozinhos na cidade. E, quando, para além desta rede que criámos, a nossa família está a milhares de quilómetros… Existe ainda mais aflição.

20% dos estudantes tiveram um ou mais pensamentos suicidas durante o confinamento. Já tinham percecionado que a saúde mental desta população estava degradada a este ponto?

Não tínhamos dados acerca deste tema e isso levou-nos a fazer este estudo com essa problemática integrada. Todavia, importa referir que já tínhamos uma secção cultural da Associação Académica de Coimbra, a SOS Estudante, uma linha telefónica de apoio emocional e prevenção do suicídio que se mantém graças ao voluntariado de estudantes. O anonimato é preservado e a entreajuda é possibilitada dentro da própria academia. Acredito que tanto os estudantes do Ensino Secundário como do Ensino Superior constituem duas franjas da sociedade que, por si, têm a tendência para ter debilidades psicológicas, são permeáveis pela pressão psicológica do ensino – em primeira instância, para ingressar na licenciatura ou no mestrado integrado que ambicionam e, em segunda, por quererem ser bem-sucedidos e acompanhar a vida académica – e, não desprezando as restantes faixas etárias, em cenários críticos, a probabilidade de existirem problemas multiplica-se. 

18% procuraram ajuda profissional e especializada durante e depois do confinamento. 40% não o fizeram pelo preço elevado e 21% por vergonha e falta de coragem. 

As associações académicas apoiam, nesta matéria, os estudantes de forma altruísta com linhas telefónicas, por exemplo, e existem serviços de apoio psicológico, mas, além disto, o Estado tem de ter uma posição de liderança na resolução do problema. A saúde mental dos estudantes tem de ser interpretada como uma questão de saúde física, tendo respostas como as outras patologias. Deve haver um reforço forte no Serviço Nacional de Saúde (SNS) para que acompanhamento e tratamento – mais do que apoio – psicológico possa ser dado com toda a universalidade e gratuitidade. A linha do SNS24 existe, mas está sobrecarregada, e, por isto, deve haver uma resposta paralela coincidente com as necessidades das faixas mais jovens. Não é igual falar com um jovem de 18 anos debilitado e com um adulto. O Estado não se pode alhear disto. Relativamente ao estigma social, aquilo que pedimos é que o Governo construa uma campanha, a nível nacional, que se insira na resolução deste estigma. O Estado tem a capacidade de, a pouco e pouco, modificar a consciência social da comunidade. Portugal é bastante resistente a este acompanhamento do foro da saúde mental e ao próprio reconhecimento de que este é um problema. Se alguém sofrer de diabetes ou de insuficiência cardíaca, não aceitamos que fique sem acesso a cuidados de saúde e, por isso, não podemos permitir que o SNS não tenha resposta prática, pronta e universal para os problemas psicológicos.

Inquiriram os estudantes acerca das idades? Porque estas são totalmente díspares no Ensino Superior.

Não temos esses dados, mas sabemos que foram os alunos das licenciaturas que responderam maioritariamente e são eles os mais afetados pela pandemia. 

74% dos estudantes pensaram, pelo menos uma vez, em desistir dos estudos, enquanto 40% pensam constantemente – sempre e muitas vezes – em fazê-lo. Já previam este cenário?

Estava à espera de um cenário grave. Portugal tem experiência em lidar com crises socioeconómicas e sabemos quais são os efeitos das mesmas na manutenção de um estudante no Ensino Superior. Basta pensar na última crise, o chamado período da Troika ou das dívidas públicas, que teve um forte impacto no abandono escolar. Milhares de alunos viram-se obrigados a desistir do percurso académico porque muitos elementos dos agregados familiares ficaram desempregados ou, com orçamentos mais curtos, deixou de ser possível pagar propinas. Estamos a viver um regresso ao passado. Esta crise pandémica conduzir-nos-á a uma crise em que os mais precários são os agregados que já tinham rendimentos parcos. E, por isso, vemos como um efeito bola de neve esta situação: os estudantes que já tinham dificuldades financeiras, verão com particular intensidade os efeitos económicos da covid-19. Acredito ainda que, este ano, a desistência não atingirá estas percentagens porque ainda existe um conjunto de mecanismos que o Estado utiliza para mitigar a quebra de rendimentos dos agregados familiares como o lay-off, o Programa APOIAR ou as moratórias bancárias, mas acabarão. E, quando isso acontecer, e caso a economia não se restaure, vai existir uma vaga de insolvências nas empresas e, com isso, despedimentos. E, aí, haverá um aumento do abandono escolar. E penso que, nesse momento, estaremos próximos destes números.

Nesse sentido, apuraram dados como o facto de 46% dos alunos terem-se visto privados de materiais de estudo adequados. A seu lado, 60,6% revelaram que houve uma quebra substancial no rendimento dos agregados familiares apesar dos empregos se terem mantido, enquanto 9,6% referiram que pelo menos um familiar ficou desempregado. É normal que os estudantes temam que este seja um espelho do seu futuro.

Aquilo que mais se sente a nível económico é a imprevisibilidade. Imaginemos um agregado familiar em que dois pais trabalham numa empresa e não sabem quando serão despedidos. Isto tem consequências óbvias na vida dos estudantes que deixam de ter dinheiro para pagar as propinas, materiais de estudo, alojamento estudantil. Ninguém sabe quando e como a pandemia vai acabar. Relativamente ao material de estudo, já sabíamos que seria um problema porque existem cursos cujo custo dos mesmos é elevado. Se aliarmos isto ao facto de que, de um momento para o outro, o ensino se tornou totalmente digital, percebemos que deixou de haver a rede de apoio de outrora. Nas academias, com bibliotecas, computadores, impressoras, Internet, por exemplo, era mais fácil levar a cabo as atividades letivas. Muitos estudantes, nos seus locais de origem, têm dificuldade de acesso aos materiais de estudo online. Nota-se perfeitamente, por exemplo, que os estudantes vindos do interior do país têm sofrido mais em termos económicos. 

São aqueles que mais pensaram em abandonar os estudos.

Sim, aqueles que são provenientes do Interior Sul, dos municípios de Castelo Branco, Idanha-a-Nova, Penamacor e Vila Velha de Ródão. Porque esta região, em termos de rendimento per capita, está mais abaixo do que o do litoral e isso, naturalmente, tem implicações. E existe outro fator crucial: a cobertura da rede. Já em março, a Universidade de Coimbra identificou estes problemas, os estudantes expuseram as suas situações e a própria academia forneceu os meios necessários para que pudessem assistir às aulas online, como equipamento eletrónico e uma pen de rede que facilitasse essa inclusão. Todavia, o problema ainda é mais estrutural porque estas respostas, caso as infraestruturas não sejam coincidentes com as mesmas – se estivermos num sítio em que realmente seja impossível aceder à Internet, se as operadoras de telecomunicação ainda não chegaram lá -, obviamente que os alunos continuam a ser prejudicados. E, a partir daqui, podemos tirar facilmente conclusões para o resto das academias.

Qual é a solução?

Defendemos a atividade letiva presencial. Naturalmente, estamos numa situação de exceção e as respostas também têm de ser de exceção. Quando, no início do segundo confinamento, fomos deparados com a junção das avaliações do primeiro e do segundo semestre, fomos peremptórios a dizer que seria preferível realizar os exames online, a primeira não poderia ficar suspensa. O tempo mostrou-nos que tínhamos razão. Caminhamos a passos largos para março e o confinamento não vai terminar já, a incerteza só aumentaria. 

Quantos estudantes desistiram dos cursos desde março?

Já pedimos estes dados à Universidade de Coimbra, mas não são públicos. Apelamos a que, quando um estudante fizer um requerimento de desistência, assinale – caso o deseje – os motivos pelos quais desistiu. E também há quem congele a matrícula, mas tornar-se-á numa desistência encapotada. Isto porque, pela quebra dos rendimentos dos agregados familiares, existirá uma ânsia de entrar no mercado de trabalho.

7 em cada 10 estudantes revelaram que, em algum momento, sentiram carência no processo de acompanhamento por parte do corpo docente.

Não é a relação docente-discente que sai beliscada e não deve haver culpabilização de nenhuma das partes. Ambas tiveram de se adaptar ao ensino online. A maior parte dos professores deu, durante a sua carreira inteira, aulas presenciais, interagindo diretamente com os alunos. E, de repente, exigimos que começassem a operacionalizar a sua competência letiva no digital. A média de idades é elevada, e é natural que assim o seja. Eles também estão emocionalmente fragilizados e sentem que estão a atingir um ponto de rutura e não se sentem concretizados. Ninguém estava pronto para estas mudanças abruptas. A melhor situação para prevenir desigualdades no Ensino Superior é por meio do ensino presencial onde as redes de apoio e de ação social, como os alojamentos, as cantinas, as salas de estudo e as bibliotecas estão permanentemente em funcionamento. Tivemos de migrar para o digital, mas falhou a preparação estrutural para o segundo confinamento. Podiam ter sido dados mais passos para que se tivesse a certeza de que os meios tecnológicos eram acessíveis por todos os alunos. A questão da tarifa social de Internet devia ter sido prevista, esta antecipação devia ter sido feita pela tutela. Não foi e estes mecanismos rápidos que têm surgido são, como o nome indica, rápidos, a curto prazo, não resolvem os problemas.

Há quem não coma se não estiver na faculdade.

A Associação Académica de Coimbra distribui refeições pelos estudantes que estão confinados e em isolamento profilático, mas também pelos estudantes deslocados e internacionais. Temos uma parceria com os serviços de ação social. 

Verificaram que a habitação estudantil tornou-se demasiado pesada para 31% das famílias. Os estudantes regressam a casa, acima de tudo, pelas dificuldades financeiras ou também por estarem perto de quem mais gostam?

Creio que é um conjunto de fatores. A partir do momento em que a academia não fecha, mas transita maioritariamente para o meio virtual, o estudante deslocado pensa «O que é que estou aqui a fazer? Prefiro estar junto da minha família». Mas, mais do que isso, esta possibilidade é encarada como uma poupança. Muitos denunciaram os contratos de arrendamento, não têm casa na cidade. Cerca de 70% da academia não é natural de Coimbra e sei que grande parte não está cá e não sabe quando voltará. Por outro lado, também houve muitas renegociações dos valores dos quartos e casas para diminuir substancialmente as rendas no período de confinamento. 

Os senhorios têm sido sensíveis?

De forma global, sim, há essa boa vontade. Até porque perdem uma renda ou uma parcela da mesma. O mais importante é que os estudantes manifestem que não conseguem manter a sua estabilidade nas academias. Aquilo que o Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior tem de fazer, com celeridade, é o cumprimento do Plano Nacional para o Alojamento no Ensino Superior que agora até está integrado no Plano de Recuperação e Resiliência através do aumento, para o dobro, do número de camas existentes nas residências. No entanto, em 2020, somente Lisboa e o Porto beneficiaram deste aumento, praticamente. Há uma necessidade de aumentar esta ação social indireta por meio do alojamento universitário.

Também a Associação Académica de Coimbra sofreu com o confinamento.

Sim, devido a implicações financeiras. Desde março de 2020, tem um prejuízo de cerca de 500 mil euros. Essencialmente, por cancelamento das festas académicas – Queima das Fitas e Festa das Latas – e também pela despesa com equipamentos de proteção individual. Mas também é um clube desportivo com 27 modalidades desportivos e existe quebra nessa formação. Tínhamos mais de 3.000 atletas, desde crianças com 5 anos até aos escalões seniores, e estimamos uma perda de mais de 600 atletas.

Os mais novos poderiam vir a ser grandes atletas.

Claro. E, mais do que formação desportiva, ganhamos formação humana. É uma casa de valores. Tememos que estas centenas de atletas, quando o mundo regressar à normalidade, não retomem a formação desportiva.

O Estado tem auxiliado a associação?

Não. Alheou-se por completo desta responsabilidade. Todo o associativismo juvenil devia ter tido um apoio para não sentir tanto as quebras de receita. A situação vai-se agudizando e os prejuízos vão-se acumulando. A associação tem mais de 20 funcionários, é quase uma pequena-média empresa. Há muitas pessoas que dependem do trabalho deste organismo. 

Querem falar com a tutela. Já o fizeram ou obtiveram algum tipo de resposta?
Solicitámos logo, no sábado passado, depois da apresentação do inquérito, um pedido de audiência a todos os grupos parlamentares da Assembleia da República. Achamos que é o sítio mais importante para que possamos apresentar as dificuldades sentidas pelos estudantes.