A poda da História: dos brasões de Belém ao 25 de Abril

Ao ler o artigo do arqueólogo Luís Raposo no Público, no qual defende a eliminação dos brasões florais na Praça do Império em Belém, fiquei baralhado pois pensava que a função dos historiadores era preservar o passado – em vez de apelar à sua destruição. Mas, depois de longa reflexão e consultas na Wikipedia, concluí…

por João Cerqueira, escritor

Ao contrário de alguns defensores dos brasões, como o sociólogo António Barreto em artigo no DN – que ainda não atingiu o grau civilizacional que dele se esperava.

Passo a explicar.

A História de Portugal é uma vergonha! Está repleta de preconceitos contra as mulheres, contra os homossexuais, contra os islâmicos, contra as minorias étnicas, contra os defensores dos animais e contra os defensores do clima. Ou seja, é patriarcal, racista e homofóbica. Logo, é altura de a reescrever, de uma ponta à outra, e de apagar as vergonhas que sobreviveram ao tempo, como brasões florais, monumentos, obras de arte e literatura preconceituosa e colonialista. E como os Descobrimentos são o período mais infame da nossa História, faz todo o sentido lançar os corta-relvas – como ato simbólico manobrados por descendentes de povos colonizados pelos portugueses – contra os brasões de Belém. Porque, além de perpetuar o domínio desses povos, os brasões podem levar alguns cidadãos malformados por resquícios de educação salazarenta a formarem milícias no seu bairro e a se lançarem à conquista de Alcácer Quibir ou do Forte da Mina.

Seria um primeiro ato de justiça histórica cujo seguimento seria a demolição de todos os monumentos associados aos Descobrimentos ou que deles tivessem beneficiado. Portanto, depois dos corta-relvas seria a vez dos buldozzers. Demolição do Mosteiro dos Jerónimos e do Padrão dos Descobrimentos, do Mosteiro da Batalha (preconceito contra os espanhóis e apologia do belicismo), do Convento de Cristo em Tomar (apologia das Cruzadas), do Castelo de Guimarães (a origem de todos os males), do Palácio de Mafra (apologia da roubalheira), de todas as igrejas do período Barroco (com sequente raspagem do ouro da talha e devolução do mesmo ao Brasil), etc.

Por outro lado, reescrever a História dos Descobrimentos é fundamental para retirar da sombra, ou do armário, importantes protagonistas da epopeia marítima: os gays. Ou alguém acredita que com centenas de homens metidos num barco durante meses – e ainda por cima barbudos – não tivessem acontecido relações de amor homoerótico? Quando o barco enfrentava as tempestades e, pelo medo ou pelo balanço, acabavam nos braços uns dos outros. Quando um cartógrafo, assustado por um trovão, chamava um piloto para dormir com ele. Quando algum marinheiro, por suspeita de escorbuto, se punha a analisar as gengivas de um colega. Por outro lado, se a historiografia  colonialista refere a receção calorosa e luxuriante das índias aos portugueses,  qual Ilha dos Amores no Brasil, importa contar também que certamente muitos marinheiros, grumetes e quiçá algum capitão se abraçaram  aos índios e se escapuliram com eles para as matas. Taparica, o chefe dos Tupinambás, ofereceu a sua filha Paraguaçú a Diogo Álvares Correia, o Caramuru, mas também pode ter oferecido algum filho a outro navegante. Na Grécia antiga aconteciam coisas parecidas. Os portugueses inventaram a mestiçagem e o amor entre homens de cor diferente. As excelente relações luso-brasileiras são fruto desta diversidade afetiva primordial.

Infelizmente, a literatura da época omite estes factos. A carta de Pêro Vaz de Caminha, Peregrinação de Fernão Mendes Pinto, Nau Catrineta e Décadas da Ásia de João de Barros, são obras patriarcais, racistas e homofóbicas. Não interessam a ninguém e dariam uma bela fogueira.

Prosseguindo com os preconceitos na literatura, à exceção de António Botto, Judite Teixeira e poucos mais, onde está a literatura LGBT e inclusiva portuguesa? Onde estão Os amores de Perdição entre dois homens, As Maias ou uma Morgadinha dos Canaviais de pele escura? Torna-se imperioso incluir nas futuras edições destes livros um preâmbulo que explique aos leitores incautos que estes romances foram escritos por mentes preconceituosas, ultramontanas e bacocas, e que os protagonistas poderiam (e deveriam) ser outros. A política educativa de retirar os clássicos da literatura do ensino é, como tal, um ato de clarividência pedagógica que resgata os alunos do obscurantismo. Os responsáveis pelo Ministério da Educação sabem podar e podam a eito.

Prosseguindo, o silêncio tumular sobre o papel das mulheres, minorias étnicas e sexuais, defensores dos animais e do clima continua durante o resto da História de Portugal: a Restauração, a reconstrução de Lisboa após o terramoto, as invasões francesas, as guerras liberais, a Primeira República, O Estado Novo e nem o próprio 25 de Abril escapa ao preconceito.

O 25 de Abril, pelo seu simbolismo, é o caso mais paradoxal e incompreensível. Onde estavam as mulheres, os LGBT, as minorias étnicas, os defensores dos animais e do clima no dia 25 de Abril? Eram todos fascistas? Ficaram todos em casa? Não houve nenhuma Padeira de Aljubarrota antifascista a desancar inspetores da PIDE? Não houve nenhuma Joana d’Arc portuguesa a liderar um ataque contra fascistas entrincheirados? Não houve nenhum capitão de Abril gay? Tendo em conta a longa história de preconceito e discriminação atrás referida, é importante que os novos historiadores esmiúcem estas questões nas futuras obras sobre a Revolução de Abril.

Por outro lado, a própria música mais antifascista de sempre – Grândola Vila Morena – poderia, se queremos realmente podar o passado de preconceitos e não apenas brasões, melhorar a sua letra. Por que não, em vez de «em cada esquina um amigo», em cada esquina uma amiga ou em cada esquina um amigo a beijar outro amigo?  Aos três Dês do 25 de Abril é necessário acrescentar um espécie de quarto: o fim da Descriminação.

Atrevo-me a pensar que António Barreto discordará, mas que Luís Raposo poderá concordar.