Philip, o eterno desbocado de Edimburgo

Parece que foi há um século, mas não, foi apenas há 99 anos que Philip, duque de Edimburgo, consorte de Isabel II do Reino Unido, começou a colecionar milhas pelo mundo. Durante décadas, foi rosto da Coroa britânica nas cerimónias públicas e oficiais – o percurso terminou em 2017, com um legado hilariante.

Philip não é um deus, mas pelo menos é grego e, diga-se de passagem, possuía na juventude uma figura que em nada o envergonhava. Dir-se-ia mesmo que o seu perfil denunciava, logo à primeira vista, o berço de ouro em que nasceu: alto, ombros largos, cabelo louro e rosto desenhado a traços fortes, adornado com um nariz aquilino e olhos de um azul profundo, cor das águas do Mar Jônico, o mesmo que (quase) um século depois continua a acariciar em vagas as praias da sua terra natal, a ilha de Corfu, na Grécia.

Philip Mountbatten nasceu na pequena e tranquila vila de Mon Repos, a 10 de junho de 1921, como quinto filho (e único menino) do príncipe André da Grécia e da Dinamarca, filho do Rei Jorge I da Grécia – assassinado em 1913 –, e da princesa Alice de Battenberg. Philip mal abrira os olhos e já era, sem consciência de tal, neto e sobrinho de reis, correndo-lhe nas veias o sangue das principais casas reais europeias.

Teve azar. Conta-nos a história que o primeiro quarto do século XX nem sempre foi generoso para quem empunhava coroa e cetro. Na Grécia, a regra cumpriu-se. E Philip e a sua família viram-se forçados a abandonar o lar (e o trono) de um dia para o outro. Por entre os escombros da guerra greco-turca, a semente revolucionária havia-se plantado no seio dos militares helénicos, brotando com estrondo no golpe de Estado de 11 de setembro de 1922, de inspiração republicana e anti-dinástica.

Philip, com apenas 18 meses, viu-se obrigado a fugir à pressa com a restante corte, carregado num berço feito a partir de caixas de frutas, evacuado para França graças ao apoio do navio de guerra britânico HMS Calypso. Mal sabia, na altura, ele e todos os outros, o papel que o império do Reino Unido, dono e senhor de navios e de outras ilhas, teria, mais à frente, ao longo do resto da sua vida.

Nos anos seguintes, a sua ficha escolar passou por França, Alemanha e Escócia. Philip cresceu, tornou-se homem, mas a Europa onde vivia não tinha, por sua vez, alcançado ainda suficiente maturidade para aprender com as lições do passado. E quando o jovem príncipe festejou os 18 anos, na pacatez de Gordonstoun, onde a vida e a escola decorriam tranquilas, já as sombras negras do nazismo cruzavam fronteiras e cobriam com horror o coração da Europa.

Em 1939, Philip juntou-se à Marinha Real Britânica, participando ativamente em batalhas, com dedicação, coragem e engenho. Em 1945, quando o Japão capitulou, no ponto final do conflito, Philip estava a bordo da frota aliada estacionada na baía de Tóquio. Tinha 25 anos e era tenente.

 

Amor à primeira vista. Em 1939, acabara Philip de iniciar a sua carreira militar, quando o Rei Jorge VI do Reino Unido e sua esposa, a Rainha Isabel Bowes-Lyon, visitaram a Real Escola Naval de Dartmouth. Durante a visita, o tio de Philip, lorde Luís Mountbatten, pediu-lhe um favor que viria a marcar a sua vida. O príncipe deveria acompanhar na visita as duas filhas do rei: as princesas Isabel e Margarida.

Não será difícil imaginar o coração das jovens princesas, sobretudo a mais velha, Isabel, então com 13 anos, a bater de estibordo para bombordo, de bombordo para estibordo, quase fugindo-lhe borda fora, perante a visão de um jovem Philip, trajado de farda imaculada, elegante nos gestos e no discurso, polido e bem humorado. O sangue azul de Isabel, ainda criança –e que mais cedo do que esperaria e desejaria se viria a tornar soberana daquele navio, de todos os outros e de tudo o mais que, tanto  por mar, como por terra, aqueles olhos podiam avistar dali –, ferveu-lhe de vermelho nas veias pela primeira vez. Ao saber da química, o Rei Jorge VI terá gaguejado um pouco, mas ninguém fez caso. E o monarca lá autorizou os pombinhos a corresponderem-se por carta.

Em 1946, quando a guerra terminou, Isabel e Philip tinham já traçado a punho de pena o destino que os iria unir no dobrar dos séculos. Philip regressou ao Reino Unido e dirigiu-se de imediato e sem hesitar ao Palácio de Buckingham para pedir ao Rei a mão da sua filha. Naquele momento, Philip despojou-se dos títulos gregos e dinamarqueses que carregava por nascimento, professou a fé Anglicana (ele, Ortodoxo por nascimento) e aceitou pacientemente a condição de Jorge VI de adiar o anúncio de qualquer compromisso oficial até ao 21.º aniversário de Isabel, em abril do ano seguinte.

Philip, ou melhor, agora Sua Alteza Real Philip Mountbatten, duque de Edimburgo, conde de Merioneth e barão de Greenwich, casou com Isabel no dia 20 de novembro de 1947, numa cerimónia realizada na Abadia de Westminster, transmitida pela BBC para todo o mundo, vista por mais de 200 milhões de pessoas. Passaram-se quase 74 anos.

Neste período, o mundo deu voltas e mais voltas. O Rei Jorge VI morreu. Isabel tornou-se Rainha em 1953, como Isabel II. O casal teve quatro filhos. O primogénito e herdeiro do trono, o príncipe Carlos, até poderá abdicar a favor do seu filho, o príncipe William, filho da princesa Diana. Até agora, Isabel II viveu 94 anos e Philip de Mountbatten 99. E Philip, que se tornou príncipe consorte, dedicou (ou sacrificou) toda a sua vida e carreira a representar oficialmente a Coroa britânica em substituição da monarca e esposa em todas as cerimónias oficiais (à exceção das que ocorrem no Parlamento inglês).

Momentos inesquecíveis. Foi precisamente na qualidade de consorte que Philip Mountbatten se tornou célebre. Ou melhor, que o seu sentido de humor e de oportunidade se tornaram mundialmente conhecidos. Até inícios de 2017, quando anunciou que iria abandonar a vida pública, numa altura em que já contava 95 anos, cada segundo junto ao duque de Edimburgo garantia tiradas capazes de encher páginas de jornal e fazer manchetes dos tablóides. Umas surpreendentes, outras simplesmente hilariantes. Mas, no fim, todas resolvidas com uma valente gargalhada do leitor.

Ao longo de décadas, Philip teve assim microfones e objetivas viradas para si. E somou momentos inesquecíveis. Como daquela vez, em 1965, quando decidiu comentar peças de arte tradicionais na Etiópia: «Parece o tipo de coisa que a minha filha faria nas aulas de arte da escola»; ou quando, em 1984, no Quénia decidiu perguntar a uma mulher que lhe oferecia um presente: «És uma mulher, não és?»; quando, em 1986, se dirigiu a um grupo de jovens britânicos que estudavam em Xian, na China: «Se ficarem aqui muito mais tempo vão ficar todos com os olhos em bico»; ou quando contou uma anedota na mesma jornada: «Se tem quatro pernas e não é uma cadeira, se tem duas asas e voa, mas não é uma aeronave, e se nada mas não é um submarino, os cantoneses [chineses] vão comê-lo». Quando, em 1994, perguntou a um homem nas Ilhas Caimão: «A maioria de vocês não é descendente de piratas?»; ou, em 1995, quando questionou um instrutor de uma escola de condução na Escócia: «Como mantêm os nativos longe do álcool tempo suficiente para passarem no teste?»; quando, em 2000, disse numa visita a uma escola de crianças surdas, acompanhado pelo som de uma banda das Caraíbas que tocavam tambores: «Surdas? Se estão perto daquilo não admira que estejam surdas»; ou, em 2001, quando retorquiu a um jovem que lhe disse querer ser astronauta: «Podias perder um bocado de peso»; ou, em 2002, quando perguntou a aborígenes australianos: «Vocês ainda atiram lanças uns aos outros?»;  quando, em 2002, num centro de jovens do Bangladesh atirou enquanto apontava para um rapaz de 14 anos: «Então quem usa drogas aqui? Ele parece que usa drogas»; ou, para terminar, quando, em 2003, numa visita a um hospital, encontrou um grupo de enfermeiras filipinas: «As Filipinas devem estar meio vazias. Vocês estão todas aqui a tomar conta do sistema nacional de saúde».

Podíamos estar aqui a encher o que resta destas páginas com frases, piadas ou gaffes de Philip, como se lhes queira chamar, por vezes de bom gosto, outras nem por isso, mas todas elas hilariantes. Afinal, 99 anos dão para muito mais que uma vida.

A mais recente aventura. Em 2019, o duque de Edimburgo voltou a fazer manchetes, só que, desta vez, as notícias que chegaram às redações não eram nada boas – e até serviram para abrir uma discussão na sociedade britânica sobre idosos ao volante.

Philip, na altura com 97 anos, sofreu um grave acidente de viação quando o seu Land Rover Freelander colidiu violentamente com outro automóvel, em que seguiam três ocupantes (um deles um bebé de nove meses). O duque de Edimburgo não sofreu nenhum ferimento, mas saiu do embate em estado de choque. Para os ocupantes do outro carro, por sua vez, as coisas foram piores: embora a bebé tenha sofrido apenas ferimentos ligeiros, uma mulher partiu um pulso e outra cortou um joelho. O susto foi suficiente. Depois de abandonar a vida pública, Philip entregava também, dias depois, a sua carta de condução às autoridades.

Sua Alteza Real Philip Mountbatten, duque de Edimburgo, conde de Merioneth e barão Greenwich, príncipe consorte na reforma, idoso sem carta, encontra-se agora internado num hospital de Londres a contas com uma infeção. Médicos e familiares estão confiantes. Afinal, por que razão não haveriam de estar?