A lenda da Ilha da Barreta

Com o Gigi de Bernardo Reino e o Pássaro Azul de Zé Lopo, há para mim um terceiro restaurante paradisíaco nas praias douradas do Algarve: o Estaminé, da D. Isabel e do José Vargas e de todos os felizardos que, como eu, tantos dias de sol – mas também de céu cinzento ou até mesmo…

Com o Gigi de Bernardo Reino e o Pássaro Azul de Zé Lopo, há para mim um terceiro restaurante paradisíaco nas praias douradas do Algarve: o Estaminé, da D. Isabel e do José Vargas e de todos os felizardos que, como eu, tantos dias de sol – mas também de céu cinzento ou até mesmo de chuva – lá passámos. Ou havia e há de voltar a haver, porque, entretanto e por enorme infortúnio, ardeu.

Uma dor.

Descobri-o faz já nem sei quantos anos, décadas, quando Isabel Vicente e José Vargas ainda tinham a Taska em Faro e me convidaram a apanhar o barco no porto da capital algarvia e ir até à Ilha da Barreta, ou Deserta, onde o Estaminé ainda era pouco mais do que uma tenda montada no chão de areia da praia com a grelha ao lado. E se já era bom…

Mas foi sobretudo depois de 2007-08 – quando Isabel e Vargas trespassaram a Taska e o mano arquiteto de José (Gonçalo Vargas) concebeu aquela estrutura toda em madeira que agora ardeu e que parecia um gigantesco caranguejo – que lá passei tantos e tão bons momentos, em inesquecíveis almoços com a minha Família e Amigos mais chegados a quem tive o privilégio de dar a conhecer aquele lugar que merecia ser sagrado.

E merecia ser sagrado porque não há muitas praias assim no mundo, porque nunca tem gente de mais – basta andar uma centena de passos para se ficar isolado – a areia é branca e fina como a mais leve farinha, a água chega aos 28 graus no verão e o restaurante que é a única edificação da ilha, além da beleza arquitetónica, tinha a frescura do peixe e do marisco e a simpatia de um serviço de um grupo de jovens sempre impecavelmente seguidores das boas ordens e orientações da carinhosa D. Isabel.

Está bem, um bom robalo ou um bom cherne com uns carabineiros de entrada talvez não saísse barato. Mas lá que valia, valia.

E as cavalinhas alimadas ou as lulinhas à algarvia, a muxama ou a estupeta de atum, o camarão da praia ou o xerém com amêijoas, que a D. Isabel tinha tanto gosto em servir, não eram nada de incomportável e também eram dos deuses. Se são…

Deu-se o caso de em 2008 ter-me cruzado com essa terra que dá pelo nome de Olhão. Não era propriamente a mais bela das cidades algarvias, muito longe, mas mesmo muito longe disso. Tirando o mercado (um dos mais belos de Portugal e arredores) do peixe e das frutas e verduras e de tudo o que de mais fresco pode haver, mais a beira-ria, que é sempre bonita, os motivos de atração eram quase nenhuns… Até se conhecer melhor.

E a verdade é que tive um dia a felicidade de ver à venda na net um pequeno barco à vela por preço acessível. Dá-se o caso de ser desde criança, e por influência de minha Mãe, um apaixonado pela vela, marinheiro encartado desde o primeiro dia seguinte a ter completado a idade mínima então exigida (14 anos), passando com distinção nas provas teóricas e práticas de remo, motor e vela, que na altura eram obrigatórias e a Associação Naval de Lisboa, em que meu Pai me inscrevera como sócio e formando, levava as regras à risca.

Minha Mãe, quando menina, gostava de estudar nas bateiras da Ria de Aveiro contemplando os luzitos de proa afunilada que precederam os otimist de proa achatada que  hoje, quais casquinhas de noz com pano em fole ao vento, levam a criançada ao primeiro contacto com o mar neste país de navegantes que fizeram a História que hoje tantos sem coragem para enfrentar os riscos conhecidos de um ribeiro de água doce tentam apoucar, menosprezando os feitos extraordinários de quem partiu rumo ao desconhecido vencendo todos os medos do imenso e perigoso mar salgado com tão poucos meios e sem as mais elementares condições.

Regressemos a Olhão, terra das cinco lendas, de pescadores e marisqueiros e de sapos em cerâmica ou barro à porta de cada café, restaurante ou loja da zona ribeirinha em dia de feira junto ao mercado – daqueles que Leonor Teles fez questão de partir na Balada de um Batráquio que lhe valeu o Urso de Ouro em Berlim mais um sem número de distinções mundo fora.

O pequeno barco à vela datava de 1976, precisava de umas valentes horas de trabalho – faz parte de quem tem amor aos barcos trabalhar mais neles do que deles usufruir – e estava em condições de navegar, mas tinha uma enorme vantagem: estava ancorado no porto de abrigo de Olhão, com uma lista de espera de centenas de invejosos.

É que Olhão, ao contrário do que pode parecer a quem vem na 125 ou a quem sai da A22, a partir do mercado e daquele porto de abrigo, é um paraíso.

A Ria Formosa, tanto para quem parte de Olhão como da capital algarvia ou entra pela barrinha velha ou pela barra de Faro, é de sonho. E as ilhas da Barreta, da Culatra e da Armona (também conhecidas, respetivamente, por Deserta, do Farol e da Fuseta) são de incomparáveis maravilhas.

Como o Moinho (de água) do Sobrado, da lenda da encantada Floripes, que continua à espera que o mar lhe devolva o noivo que as ondas abraçaram e levaram e assim a liberte da maldição.

Esperemos que esta maldição que caiu agora sobre o Estaminé seja de fugaz duração e que o fogo volte rapidamente à ilha só para dar vida às brasas daquela extraordinária grelha que é, ela própria, uma lenda. Dos deuses.