Luís Varatojo: “Os músicos são bastante resilientes e têm vivido de uma forma bastante difícil”

Aos 14 anos já sabia que queria fazer música e pelo meio deixou um curso de design. Dedicou-se com alma e coração à música, tendo feito parte de projetos que marcaram gerações como Peste & Siga, Despe e Siga e Naifa. Aos 56 anos, Luís Varatojo continua a fazer da música a sua prioridade. Lançou…

por Daniela Soares Ferreira e Sónia Peres Pinto

Lançou o projeto Luta Livre e o álbum Técnicas de Combate. Como surgiu a ideia?

Este disco saiu no meio da pandemia, mas começou antes com a recolha de informação de notícias de jornais, no início de 2019 ou talvez ainda em 2018. Recolhi artigos que me interessavam pela forma como estavam escritos, pelo ângulo de abordagem. Fui juntando essas notas nos meus apontamentos no telemóvel sem saber o que queria ou iria fazer com eles. Sabia apenas que os assuntos me interessavam e que gostaria de fazer alguma coisa à volta desses temas. Quando já tinha um certo volume de notas, achei por bem olhar para elas de outra forma e começar a ajustar esses textos para uma linguagem mais sintética, ainda sem pensar que poderiam ser para canções. Às vezes adicionava algumas frases minhas e os textos foram ganhando forma, ainda sem serem  assimétricos e que rimassem. Começou-me a agradar e pensei em colocá-los num blogue ou fazer qualquer coisa com esse material. E como vou sempre criando música, tenho muita coisa guardada no disco rígido – coisas que vou fazendo e que muitas vezes não uso – fui fazendo umas experiências com uns discos de jazz que tenho comprado e ouvido muito. Experimentei fazer pequenas gravações, criei alguns esboços de músicas sem saber o que queria fazer com eles. Este projeto de Luta Livre só apareceu realmente já muito perto da pandemia, mais ou menos no final do ano. Decidi experimentar colocar os textos em cima desses esboços para ver como é que essa linguagem mais direta, jornalística e factual funcionava em cima desses instrumentais com alguma sonoridade de jazz. Como me agradou o resultado comecei a trabalhar as duas coisas em conjunto.

Muitas das músicas surgiram então através de notícias. Foi durante a pandemia?

Não. Comecei a recolher estas informações antes, fui desenvolvendo e no final de 2019 já tinha alguns temas compostos. O primeiro saiu antes do primeiro confinamento. Nessa fase, depois de ter esses esboços mais ou menos trabalhados, esses temas e essas letras já de alguma forma experimentadas em cima de alguns instrumentais pensei ‘como é que vou disponibilizar isto para as pessoas ouvirem?’. Então pensei em abrir um canal no Youtube, juntar algumas pessoas que conheço da área da animação gráfica e de vídeo e começar a fazer vídeos dessas canções. Vídeos que dessem maior destaque ao assunto e à letra e, é por isso, que os vídeos são todos chamados lyrics vídeos, vídeos com as letras, em que a animação reforçasse os conteúdos. Acabei por abrir um canal de comunicação no Youtube e fui comunicando com alguma regularidade conforme fosse acabando as canções. Nesse sistema, lancei seis vídeos e só depois – e aí a pandemia já teve influência no trabalho, obrigou-me a ficar em casa ou no estúdio e tinha muito mais tempo – consegui acabar todo o projeto, juntei todas as músicas num disco, dei-lhes um nome e criei o Luta Livre.

Como tem sido a recetividade?

A reação tem sido boa. Logo nos primeiros vídeos que lancei, o primeiro é a primeira canção do álbum, que se chama Política, alerta para o facto de nos últimos tempos ter crescido o desinteresse pela política e tem aumentado a abstenção, em que é afastada a ideia de existir uma participação coletiva e de as pessoas irem votar. Acho que a primeira canção marcou um pouco o tom do disco e das canções todas. Por exemplo, essa canção foi acompanhada de um texto de José Luís Peixoto. Mostrei a canção ao Zé Luís, ele gostou e perguntei-lhe se queria escrever um texto para acompanhar para publicarmos no Facebook. Fez o texto e o vídeo acabou por atingir uma audiência relativamente grande. Tivemos centenas e centenas de comentários, alguns positivos, outros que acharam que revelava uma abordagem que, se calhar, ia contra o mainstream, à forma como as pessoas pensam hoje em dia a política. Houve algumas discussões, o que foi bom porque ao suscitar isso cumpriu logo o seu papel. Mas essas discussões sempre foram  feitas dentro de um bom registo, nunca houve aquele tipo de agressão que existe muitas vezes nas caixas de comentários nas notícias de jornais. Conforme fui lançando as outras canções começou também a haver interesse por parte de jornalistas. Quando o disco saiu, o interesse cresceu de forma exponencial. O disco saiu no dia 5 de fevereiro, só está à venda online em LP e em CD, formatos que, como todos sabemos, pouco se vendem hoje em dia. Praticamente já esgotámos a edição de CD e a de LP está lá perto, deixou-me muito surpreendido. Estou muito contente com o resultado até agora.

A maioria são canções de intervenção, de protesto. Um estilo que não fica alheio ao que estamos habituados de si…

É provável. Acho que nunca tinha feito um disco com um discurso tão direto. Talvez nos Peste & Sida tivéssemos um discurso perto deste, em que chamávamos as coisas pelos nomes mas, se calhar, menos poético. Depois o que fiz com o João Aguardela na Naifa – fizemos cinco discos, três com ele porque infelizmente depois faleceu – a intervenção era feita de outra forma. Trabalhávamos poemas de poetas portugueses contemporâneos, poetas novos, em que o foco eram imagens do quotidiano, às vezes imagens cruas, mas não tão direcionadas para assuntos sociais e políticos como estou a fazer agora. De qualquer forma acaba por ser uma sequência lógica do resto do trabalho. Poderia não estar a fazer isto agora mas surgiu essa vontade. É quase uma inevitabilidade, porque tinha que ser, porque precisava de fazer isto.

O tema Pedigree conta com a participação de João Pedro Almendra. Como é voltar a trabalhar com este amigo?

É muito bom. Gosto muito do João Pedro, dou-me muito bem com ele desde os velhos tempos dos Peste & Sida. O João, tal como eu, nasceu e sempre viveu em Alvalade. Costumo encontrar-me com ele, sobretudo quando podíamos ir ao Popular beber um copo. De há uns tempos a esta parte juntámo-nos para fazer umas coisas, convidei-o para vir ao meu estúdio para fazermos algumas experiências. Esse Pedigree foi o primeiro que acabámos. O João Pedro tem um cão e, como toda a gente, tem de ir passear o Kiko duas vezes ou três por dia, então surgiu a ideia de fazer um retrato do nosso bairro de Alvalade através dos olhos do cão. Esse tema faz um retrato social do bairro. Incitei o João Pedro a sair da sua zona de conforto. Para quem conhece o trabalho dele, canta de uma forma punk e tem um tipo de vocalização muito diferente deste que experimentou neste tema. Mas como é um excelente contador de histórias, cativa a audiência. Achei que seria interessante escrever uma história com esse ritmo de conversa e em vez de fazer uma música cantada fez uma vocalização mais falada, a contar uma história. Acho que resultou muito bem.

Falando no Popular, como vê o encerramento do bar devido à pandemia?

Isso é uma tragédia. O Popular era basicamente a minha segunda casa porque atravessava a rua e estava lá. Sou muito amigo dos irmãos Palitos. O Samuel que tocava nos Censurados, toca agora nos GNR e o Ivo está agora a tocar comigo no Luta Livre. É o baterista e faz vozes também. Gostava muito de ir ao Popular, estou a sentir mesmo muita falta. Espero que consigam, quando houver autorização, reabrir. Acho que está muito difícil. Fecharam em julho, foram inteligentes porque perceberam que não iriam abrir tão cedo. Mas vão voltar ao ativo e até pode voltar a ser ali se o espaço ainda estiver disponível. De qualquer forma, a acontecer será no bairro, o que já é uma boa notícia.

A promoção do novo projeto está limitada devido à ausência de espetáculos?

Sim, os espetáculos estão a afetar todos os músicos e então os que estão a fazer lançamentos… a sequência lógica depois de editarmos um disco é poder mostrá-lo ao vivo e isso está difícil. Aliás, o espetáculo de apresentação era para ser no dia 21 de dezembro, no Maria Matos, passou para 23 de março e agora foi alterado para abril. Acho que em abril já se vai conseguir fazer. Espero que se consiga fazer esse e mais alguns espetáculos para levar o disco para o palco. Só tive essa experiência na festa do Avante!. Ainda sem o disco estar pronto reuni uma banda porque tudo foi feito de uma forma muito solitária. Entraram convidados já numa fase final porque toda a composição, gravações de guitarras, baixos e a mais variada instrumentação foram feitas por mim. Quando fosse tocar ao vivo queria o contrário: pôr muita gente a tocar. Tivemos nove no palco da festa do Avante!, uma banda muito grande e que contribuiu para que as músicas ganhassem uma segunda vida, ficassem mais elásticas. Alguns músicos da banda são de jazz, logo têm uma capacidade muito grande de improviso e isso fez com que as músicas se tornassem elásticas e que se criassem grandes espaços dentro do espetáculo, onde os instrumentos ganharam relevância. Ficou um espetáculo muito rico e a experiência foi muito positiva. Estamos cheios de vontade para voltar.

Em 2020 praticamente não houve espetáculos. Foi importante apresentar esse espetáculo ao vivo, apesar das restrições?

Valeu muito a pena por vários motivos. Para já, quando houve essa possibilidade, o projeto ainda não estava acabado. Fiquei muito contente porque estavam a disponibilizar-me um palco onde podia fazer um teste ao vivo mesmo antes de ter disco. Isso é fantástico, normalmente não acontece. Depois, pela parte dos músicos que estavam parados há vários meses e que tocam habitualmente muito. Quando surgiu a oportunidade de tocarmos ficou tudo louco. Estivemos uma semana a ensaiar, todos muito contentes, fomos todos cheios de energia para a festa do Avante! tocar e foi assim uma explosão, foi mesmo muito bom. Depois a festa em si, sabemos que costuma levar sempre muitas pessoas, já lá toquei muitas vezes, os sítios estavam sempre a abarrotar, mas desta vez contou com menos. Ainda assim, juntaram-se muitas pessoas à frente do palco, uma pequena multidão, que foi de propósito para ver o espetáculo. Durante uma hora criou-se um excelente ambiente. As canções também têm refrãos muito fortes e mesmo as que ainda não fossem conhecidas, as pessoas agarraram logo e, apesar das máscaras, ouviam-se as vozes. Foi uma experiência muito boa e muito forte, principalmente num ano em que houve escassez de espetáculos.

Como vê esta fase para os músicos e para todos os envolvidos nesta área?

Trabalhamos num meio em que o nosso objetivo é fazer aquilo que não é permitido fazer agora que é juntar pessoas. Os músicos, os atores, os técnicos… tudo parou. Há pessoas que não trabalham há um ano. Este meio é um meio precário, como todos sabem. Trabalham todos a recibos verdes. Ou seja, ou trabalha e ganha ou não trabalha e não ganha. Ainda não foi criado um estatuto de artista, penso que agora está a ser pensado. Por exemplo, se ficamos doentes não temos baixa, se não trabalharmos não temos subsídio de desemprego. Estamos completamente a solo. Isto não é de agora, olhamos para o caso de atores, lembro-me sempre dos mais velhos que faziam o teatro de revista que os meus pais iam ver e que têm reformas miseráveis e outros nem isso. Isso é o retrato da comunidade artística em Portugal. Tenho alguma esperança que a pandemia tenha trazido isso ao de cima e faça com que se mude alguma coisa em termos de leis e que se crie esse estatuto do artista que, pelo menos, os proteja quando não têm trabalho, quando têm menos ou quando ficam doentes. Neste momento, só existimos na sociedade para pagar os impostos, não existimos para mais nada.

Como vê os apoios do Governo para a cultura?

Como tenho os impostos em dia tive direito a alguns apoios no ano passado porque não tinha faturação, os ganhos estavam reduzidos praticamente a zeros em relação ao ano anterior. Tive direito a alguma coisa, mas estamos a falar de valores, muitas vezes, abaixo do ordenado mínimo e que não se repetiram agora. Algum dos apoios que foram agora lançados, acho que é um apoio de 430 euros, são ridículos porque, pelo que percebi da lei, só são dados uma vez. Não vai resolver a situação de ninguém. Não sei ao certo como estão a funcionar os apoios para as estruturas artísticas, grupos de teatro, etc.

Acaba por deixar a nu aquilo que todos sabíamos da precariedade do setor?

Claro que veio mostrar a precariedade que havia, que há e que foi ignorada por todos os governos até agora. Não houve nenhum que melhorasse esta situação porque a forma de melhorar é criar um estatuto do artista como há em outros países da Europa. Se queremos ser semelhantes – e estamos a trabalhar para isso –, ter condições iguais às dos outros também temos de apostar nisso. Às vezes falo com pessoas da política, com deputados desde a esquerda até à direita e tenho tentado puxar esse assunto, pedir que falem nisso no Parlamento, que ponham à discussão a criação desse estatuto do artista. Até agora não tivemos resultado. Umas vezes porque são apresentadas mas as maiorias votam contra, outras porque o problema é esquecido mas o que é facto é que ainda não foi debatido.

Vai resolver os problemas?

Não sei, só quando soubermos o que é o estatuto, depois temos de saber o que vem elencado. E isso é que conta.

Que cartão dá à ministra da Cultura?

Neste momento, dou amarelo porque anunciaram estes apoios todos e ainda não se sabe se vão funcionar ou não. Não sou de fazer ‘bota abaixo’, mas também sou de questionar e isso está patente no trabalho que faço.

Temos visto que há já alguns músicos no desespero, a vender instrumentos, a pensar desistir da música. Como acha que vai ser o futuro?

É natural que haja pessoas a desistir como há em outras áreas. Há pessoas a desistir dos restaurantes, das discotecas, dos bares. É muito tempo sem trabalhar e não se sabe o que vai acontecer daqui para a frente. O trabalho vai normalizar assim tão depressa? Não vai. Por exemplo, as marcações que havia para o ano passado foram adiadas para este ano. Os espetáculos marcados em janeiro e fevereiro estão a ser adiados mais para a frente. O mercado, que já é pequeno, está completamente tapado, não há espaço para outros. E, obviamente, há pessoas que não se vão aguentar e, mesmo sem querer, vão desistir. Os músicos são bastante resilientes. Têm vivido de uma forma bastante difícil. Conheço muitos que continuam porque quando decidem que é música, é música. Dali não vão sair. Estão a sair muitos discos e trabalhos mesmo com a pandemia e com o confinamento, acho que as coisas vão começar a rolar novamente mas o panorama vai ficar bastante diferente daquilo que conhecíamos para trás. Não só para os músicos. Por exemplo, imaginem a quantidade de empresas que alugam sistemas de som, palcos, iluminação, vídeo, efeitos especiais, etc., que faziam milhares de eventos e que este ano ficaram parados. Tanto tempo sem trabalhar, mesmo com layoffs, conheço várias que já não vão voltar a abrir. Portanto, o panorama vai ser bastante diferente mas vamos habituar-nos a isso. O ser humano habitua-se a todas as situações.

Passámos do 80 para o oito?

Isto é dramático. Nunca aconteceu no nosso tempo de vida, nem dos meus pais. Eles eram muito pequenos quando foi a Segunda Guerra Mundial e cá nem sequer apanhámos com ela. Não houve destruição, houve algum racionamento. Isto é um evento único, nunca nos passaria pela ideia que íamos passar por isto, é extremamente grave. As crises social e económica vão ser profundas, o desemprego enorme e quando acabar o layoff há muitas empresas que não se vão aguentar porque não têm trabalho e não vão aguentar as despesas. Os próximos tempos vão ser dramáticos, mas a música vai estar cá para animar a malta.

Falou em apresentar o novo projeto ainda este ano no Teatro Maria Matos. Tem esperança que haja uma retoma em 2021?

Acho que assim que houver autorização para abrirem as salas, sobretudo as que têm lugares sentados e desde que cumpram as regras – esta regras devem durar, pelo menos, até ao fim do verão – os espetáculos que estão agendados mais aqueles que foram adiados, juntamente com os que vão ser marcados, vai haver muita oferta em termos de espetáculos. Se calhar não vamos ter aqueles festivais enormes porque aí é mais difícil cumprir essas regras sanitárias. Não podemos estar no registo a que estávamos habituados mas vão fazer-se à mesma.

Participou em bandas que marcaram gerações, como os Peste & Sida, Despe e Siga… Que memórias guarda desses tempo?

Lembro-me que o primeiro disco dos Despe e Siga foi o que vendeu mais de todos os que fiz até agora. E se calhar fizemos o dobro dos espetáculos que fizemos com os Peste & Sida. Eram coisas diferentes e marcaram de forma diferente as pessoas. Com os Despe e Siga apanhámos uma faixa etária que estava na universidade e, naquela altura, fizemos N semanas académicas, fizemos canções com letras que tinham a ver com os problemas que se estavam a passar nessa altura nas universidades. Era o caso, por exemplo, da questão das propinas, das grandes manifestações estudantis. Os Peste & Sida foi outra coisa, foi a primeira banda. Durou pouco mas tinha um conjunto de músicos quase perfeito, em que havia uma grande sintonia, uma grande química e também foi por isso que acabou depressa porque essas coisas normalmente gastam-se depressa. São muito fortes, têm muito impacto e mesmo no interior do próprio grupo foi muito intenso. Acho que tivemos muita sorte em nos encontrar uns aos outros, funcionou logo muito depressa, de repente já estávamos a fazer muitos concertos, a gravar um disco no meio do concurso do Rock Rendez Vous, a desistir do concurso porque arranjámos um contrato com uma editora. Em três anos fizemos três discos e depois fizemos um quarto dois anos depois, mas já com uma formação alterada. As recordações são ótimas, não sou muito de olhar para trás, gosto mais de ir fazendo as coisas, aliás, por aquilo que tenho feito acho que isso está claro. Não sou muito de manter um projeto durante muito tempo, de andar a explorar a mesma fórmula porque depois é cansativo, não nos dá gozo e só continuamos porque aquilo dá algum dinheiro. Não sou nada de fazer isso, vou sempre a jogo com coisas novas.

Os Peste & Sida eram uma banda de intervenção. Acha que faltam mais bandas desse estilo hoje em dia? Tinham uma linguagem direta, fazia parte daquele registo punk. Eu gosto, a minha banda preferida são os Clash, que têm uma linguagem direta relacionada com assuntos sociais, políticos, etc., obviamente que também têm canções de amor, mas sempre com um certo tom. Dos portugueses, sempre acompanhei os Xutos, também com mensagens muito fortes, sobretudo nos anos 80, início dos anos 90. É uma música que gosto de ouvir e se houver mais bandas a fazer essa música fico muito mais feliz.

Atualmente as bandas portuguesas abandonaram esse discurso?

Acho que as bandas e os músicos são o reflexo dos tempos e das coisas que vão vivendo e vão experimentando. Quando fiz a primeira música Política que fala do tal alheamento cada vez maior da política, acho que isso também se passa na música. Não estou a dizer que a culpa é dos músicos, obviamente que não é, mas é um reflexo daquilo que o sistema espera deles. Mas isso não se passa em todas as áreas. Por exemplo, na área do hip hop tem havido uma linguagem muito mais realista, mais crua, mais dura, mais social, mais política, obviamente que nem todos ouvem hip hop, mas nem todos ouvem rock. Até os GNR que tinham letras com um certo sentido de humor eram bastante corrosivas, traziam sempre algo atrás e ponham as pessoas a pensar nas coisas. Neste momento há uma certa ligeireza de temas.

Disse há pouco tempo que o rock tinha abandonado o papel de abanar a sociedade. Continua a achar isso?

Continuo. O rock nasceu da ideia de ser uma música rebelde, mas a partir de uma determinada altura, comecei a perceber que se começou a fazer rock como um produto para encaixar em determinado festival, em determinada rádio e a música em vez de ser uma música que rasgue, que seja espontânea e que abane com as coisas acabou por se transformar nesse produto e é altamente aborrecido. Muito bem tocado, muito bem cantado com excelente som mas muito aborrecido.

E com pouca mensagem…

Há exceções obviamente. Ainda há dois anos vi uma banda em Portugal, que são os ingleses Idles que são bastante poderosos e fortes naquilo que dizem e naquilo que provocam mesmo no próprio espetáculo. Há exceções, mas no geral, o rock era de rasgar e passou a ser bem comportado.

Isso tem a ver com o público que não gosta desse tipo de mensagens?

Está relacionado com uma mercantilização dessa música, tornou-se um negócio. A partir de determinada altura, se calhar a partir dos anos 2000, começou-se, no geral, a fazer um produto e olhar mais como um produto do que como uma forma de expressão que tem de ser livre e espontânea por parte dos artistas. E obviamente que os artistas depois também encontram neste esquema porque já nasceram a ouvir isso e vão participar neste tipo de organização que tem muito pouco interesse. É tudo muito bonito, portam-se todos muito bem, não tem graça nenhuma. O rock é rebelde ou devia ser, o que vejo hoje em dia num palco de um festival, gestos copiados dos artistas antigos, poses ensaiadas, uma música muito polida.

Uma música como o Chuta Cavalo caía agora mal…

Essa música estava relacionada com um problema que havia na altura. É a história de uma pessoa que conhecíamos que se meteu nisso e que o fim foi trágico, mas quando fizemos a canção ainda não sabíamos o seu fim. Essa canção era para alertar para um problema que havia nos anos 80 de consumo de heroína. Agora se calhar há outras drogas que estão mais normalizadas e provavelmente hoje em dia não se justificava fazer uma canção com esse tema e justificava-se fazer com outro. As canções também têm a sua época, mas há sempre assuntos para abordar e para chamar a atenção para determinadas realidades, para determinados assuntos e para pôr as pessoas a pensar.

Estudou design de comunicação, mas desistiu para a música…

Quando fui para belas artes já tocava guitarra e tinha umas bandas. Desde os meus 14 anos que já andava a querer fazer alguma coisa na música e, naquela altura, a Escola Superior de Belas Artes de Lisboa era bastante movimentada em termos de atividades relacionadas com a música. Faziam lá vários concertos, vi por exemplo, os Ena Pá 2000, os Sitiados mais tarde, e por essa altura, comecei a ensaiar com os elementos que depois dariam origem aos Peste & Sida e acabámos por até tocar lá em 1986. A banda começou a funcionar tão bem, começámos a ter pedidos para espetáculos, ofereceram-nos a hipótese de gravar um disco. O Tim dos Xutos & Pontapés viu um concerto nas Belas Artes e convidou-nos para fazer a primeira parte e de repetente comecei a faltar e a dar muito mais atenção à música e o curso de design ficou a meio. Depois ainda voltei à escola para fazer mais um ano. É uma área que me interessa muito, sempre gostei de história de arte, estética, desenho, comunicação visual, fotografia e, por isso, gostei muito desse período, mas a música acabou por ganhar um papel mais importante

É uma área que vai ficar esquecida?

Estamos sempre a estudar. Vou ver exposições, compro livros, frequento sites com esse tipo de informação, faço coleção de posters, é uma área que me interessa muito. As capas dos meus discos, mesmo nas bandas anteriores, algumas fui eu que fiz, outras acabaram por passar por mim na escolha.

Tem noção que há pessoas que não eram nascidas, nessa altura, e que ouvem as suas canções? Tenho essa perceção e tenho sorte que isso aconteça porque podiam ter todas ficado esquecidas no tempo. Fico mesmo contente. Tenho uma filha de 23 anos que levava muitas músicas para os colegas e na primária, identificavam o senhor que cantava o Sol da Caparica. É sinal que aquilo que fizemos foi minimamente bem feito, ou pelo menos, conseguiu alguma coisa interessante.

O gosto pela música veio da família?

Não tenho músicos na família, o meu pai fez parte de um grupo de teatro, depois tocou bateria, a minha mãe também cantava num grupo de teatro, mas estamos a falar de uma altura em que os trabalhadores das empresas tinham esse tipo de atividades. Esse é o legado de artistas na família, mas em casa sempre se ouviu muita música.

Fala várias vezes do seu apreço pela guitarra portuguesa. Como surgiu esta paixão?

Adoro ouvir guitarra portuguesa e, em 2003, quando fizemos o projeto A Naifa decidi comprar uma guitarra portuguesa. Não sabia tocar, mas queria perceber o que poderia fazer sem técnica. Basicamente apaixonei-me pela guitarra e acabei por fazer seis discos sempre com guitarra portuguesa. Tive aulas com o grande mestre Carlos Gonçalves, que faleceu há dois anos e que tocou com a Amália… Apaixonei-me pelo som do instrumento, mas tenho noção que é preciso muito, muito trabalho e muito treino para se conseguir tocar esse instrumento com algum som. Exercitei horas e horas, mas acho que ainda não consegui chegar a um resultado minimamente interessante.