A ‘prova de vida’ do PCP…

Sem o carisma nem o fulgor intelectual de Álvaro Cunhal, Jerónimo de Sousa soma 16 anos à frente do partido, depois de suceder a um insípido Carlos Carvalhas.

O PCP apaga hoje as 100 velas de aniversário, cabendo a Jerónimo de Sousa – reconduzido na Soeiro Pereira Gomes quando lhe vaticinavam sucessor –, o protagonismo da efeméride, numa casa bem diferente da sede fundacional do partido, na rua Arco do Marquês do Alegrete.

Ao longo da sua história, o centenário PCP, fundado sob a égide do marxismo-leninismo, logo a seguir à primeira Guerra Mundial, resistiu e sobreviveu a dissensões internas, à clandestinidade, ao colapso da União Soviética, à queda do Muro de Berlim, à conversão dos países de Leste à democracia e à economia de mercado, ao declínio e extinção dos principais confrades europeus, e, em Portugal, ao 25 de Novembro, depois de se ter apropriado dos símbolos do 25 de Abril.

É útil recordar, para avivar a memória dos menos avisados, que o PCP esteve a um passo de impor outra ditadura em Portugal e só não o conseguiu graças à coragem de um grupo de militares, fiéis a um dos objetivos nucleares do Movimento dos Capitães, que era restabelecer a democracia.

Poupado pelo Grupo dos Nove, em 25 de novembro, o PCP, se bem que não tenha logrado implantar o regime totalitário que lhe vai na alma – equivalente a uma espécie de Cuba na Europa, servindo a Kissinger como ‘vacina’ –, nem por isso perdeu tudo.

Mais importante do que sovietizar Portugal foi colocar as antigas colónias africanas na órbita da União Soviética, num sistema monopartidário ou de partido dominante com uma oposição de fachada.

O PCP esteve sempre por dentro da descolonização portuguesa, que geriu e instigou nos bastidores, bem infiltrado no aparelho das forças armadas e contando com a cumplicidade da esquerda militar, onde pontificavam vários oficiais que emergiram no pós 25 de Abril.

Esse foi o serviço mais relevante prestado pelo PCP à antiga URSS. E se ainda hoje Moscovo goza de influência nessa África – partilhada, mais recentemente, com uma estratégia agressiva de Pequim –, ao PCP o deve, entretanto ‘reciclado’, numa pouco subtil ‘colagem’ aos interesses chineses.

O PCP esteve a um pequeno passo de dominar Portugal. Para tanto contou – além dos elementos ‘plantados’ na estrutura militar e nas redações dos media -, com Vasco Gonçalves, um general alucinado que lhe devia obediência. E Álvaro Cunhal chegou até a ser ministro sem pasta no primeiro governo provisório.

Por isso, e da mesma forma que o PCP procurou chamar a si méritos que não lhe cabiam pelo desmoronamento do anterior regime, empenhou-se, depois, em hostilizar abertamente o 25 de Novembro, que lhe deixou um travo amargo, forçando o partido a resguardar-se e a pôr a via revolucionária em ‘banho Maria’.

Convirá relembrar que foi no verão de 75 que Mário Soares se agigantou para enfrentar o avanço comunista, num comício memorável na Fonte Luminosa.

Nessa jornada histórica de viragem política, Soares não só proclamou que «não temos medo», como acusou o PCP de querer «amordaçar a voz do povo», enquanto endurecia o discurso ao avisar que «não pode impunemente mentir-se ao povo português».

Foi a época em que o PCP controlava a maioria das redações – hoje mais recetivas às esquerdas radicais, com relevo para o Diário de Noticias, onde mandava José Saramago, com os seus textos incendiários, assinando manchetes como a que figurava na capa do jornal, em vésperas do comício da Alameda – «Povo e militares nas barricadas em defesa da revolução» –, em perfeita sintonia com um comunicado dos comunistas, que preconizava «levantar barragens para impedir uma marcha sobre Lisboa».

Apesar das ameaças e das barricadas, a Alameda encheu-se de gente. A ‘maioria silenciosa’ despertou do seu torpor e sentiu que precisava de corresponder, em força, à coragem física e política de Soares.

Deveu-se ao 25 de Novembro – que, infelizmente, tanto o PS como o PSD desvalorizaram, fazendo o favor ao PCP –, a restituição das liberdades, rasgando definitivamente os medos que Soares rasgou primeiro.

Ironia do destino: desde então, o PCP não mudou, mas mudou o PS de António Costa, cuja sobrevivência política no governo depende do apoio comunista.

Quase meio século volvido sobre estes acontecimentos, o PCP festeja o seu centenário, sem o menor arrependimento nem autocrítica, fiel à mesma cartilha marxista-leninista e estalinista, que jurou como bíblia.

Sobra ao partido em coerência ideológica o que lhe falta em democracia. A linha vermelha que o separava da extrema-esquerda, herdeira do maoismo e do trotskismo, está hoje muito mais esbatida. A parceria na ‘geringonça’ afeiçoou as arestas, e as sinecuras da proximidade ao poder ‘domesticaram’ o protesto.

O PCP recuou, perdeu muito eleitorado, foi ultrapassado pelo Bloco de Esquerda, mas sem pôr em causa nenhum dos dogmas que lhe serviram de âncora. Cultiva profícuas amizades com a Coreia do Norte, Cuba ou Venezuela, enquanto faz vénias à China, que passou a frequentar com delegações regulares.

Paradoxalmente, tornou-se um partido rico, com património imobiliário valioso e ‘dinheiro em caixa’, um pecúlio todos os anos aumentado com os proventos da Festa do Avante!.

Até 2019, o PCP era o partido com mais ‘bens ao luar’, apenas ultrapassado nesse ano pelo PSD, depois deste ter pedido uma reavaliação patrimonial, algo que deixou os comunistas nervosos.

Bom aforrador, o PCP dispunha de liquidez invejável e de um músculo financeiro que lhe permite encarar o futuro próximo com folgada tranquilidade.

Ao completar o centenário, o PCP tem a liderá-lo, na linha da tradição operária, um antigo metalúrgico, que, aos 73 anos, conseguiu ser reeleito, ‘congelando’ alternativas que se prefiguravam.

Sem o carisma nem o fulgor intelectual de Álvaro Cunhal, Jerónimo de Sousa soma 16 anos à frente do partido, depois de suceder a um insípido Carlos Carvalhas. É um ortodoxo da linha dura, embora pratique o estilo de ‘bom avô’, que lhe assenta bem.

O PCP pode estar eleitoralmente debilitado, com o sindicalismo a perder força e os velhos bastiões a ‘migrarem’ para outras paragens, enquanto as UCPs da reforma agrária foram uma utopia que saiu cara ao Alentejo.

Mas, apesar de tudo, pode ainda gabar-se de ser a ‘boia de salvação’ de um Governo socialista minoritário, cativo de um ‘casamento de conveniência’ sem papel assinado… Como ‘prova de vida’, cem anos depois de nascer sob os auspícios da revolução russa e da causa bolchevique é um feito não negligenciável.