1938. O fascismo saiu de casa

Em 1934, a Itália exibira o Mundial do fascismo. Agora chegara a vez de levar o fascismo até França exibindo a superioridade da raça.

1938. O fascismo saiu de casa

Já se sentia no ar o cheiro a pólvora. A IIGrande Guerra tornara-se inevitável e eram muito poucos os ingénuos que ainda estavam convictos que os esforços de paz seriam capazes de travar a loucura avassaladora de Hitler quando, no dia 4 de Junho de 1938, teve início a terceira edição do Campeonato do Mundo de Futebol, disputado um pouco por toda a França. Quatro anos antes, num ambiente sufocante de nacionalismo doentio, Benito Mussolini tinha conseguido que a Itália vencesse o Mundial que organizou, nem que para isso fosse obrigado a criar um clima de tal forma intimidatório que muitos dos estádios foram praticamente por inteiro ocupados pelas suas milícias dos Camisas Negras.

Agora tratava-se de demonstrar que a Itália era a melhor equipa do mundo também longe de casa, sendo os seus jogadores orgulhosos herdeiros da raça romana que dominara o mundo com o seu império.

Não é de estranhar, portanto, que o ódio dos espetadores tenha tombado sobre o conjunto dirigido por Vittorio Pozzo, o treinador que conduzira a Itália ao seu primeiro título mundial. O povo assumiu que a Itália representava o ideário fascista e, desde início, lançou sobre a squadra azzurra apupos e insultos de todas as espécies. Além disso, a França tinha sido invadida por milhares de italianos fugidos ao regime de Mussolini e, como tal, organizavam-se grupos dispostos a invetivar os seus compatriotas, tendo-os como traidores dos princípios da liberdade.

O vulcão

As fases finais dos Campeonatos do Mundo eram, na altura, disputadas com a maior simplicidade possível: eliminatórias atrás de eliminatórias até que se encontrassem os dois finalistas.

Logo no primeiro dia dos oitavos de final, os espetadores franceses que se encontravam no Parque dos Príncipes saltaram de satisfação ao assistirem à eliminação da Alemanha nazi frente à Suíça – 2-4 após prolongamento –, gozando a humilhação germânica de ver a sua seleção fora do torneio com apenas um jogo efetuado. No dia seguinte, depois de a França ter eliminado a Bélgica (3-1), a política entrou definitivamente nos estádios. No Velódromo de Marselha, a Itália viu-se e desejou-se para afastar a Noruega (3-1 após prolongamento). Nas bancadas, mais de dez mil antifascistas passaram os 120 minutos do jogo a assobiarem e a vilipendiarem a Itália representante de Mussolini. Até então nunca se assistira a uma manifestação tão arreigadamente política num Campeonato do Mundo. O dia 5 de junho de 1938 ficou para a história.

Roland Mesmeur, um dos grandes cronistas franceses, observou o fenómeno desta forma: «Muitos italianos que tinham sido obrigados a deixar a pátria por razões políticas aproveitavam a squadra azzurra para despejarem o seu rancor. Para contrariar o ambiente adverso, Vittorio Pozzo pediu aos seus jogadores para se manterem firmemente de braço estendido na saudação fascista. Se pretendeu dar um golpe psicológico, falhou completamente».

Nunca se chegou a provar que Vittorio Pozzo tivesse simpatias fascistas. Antigo jornalista ao qual foi entregue o cargo de selecionador italiano, tirou proveito do ambiente fervilhante de 1934 para dar o título Mundial à Itália em sua casa. Mais tarde, nas suas memórias, tentou explicar as fortes diferenças que se fizeram sentir entre o Mundial de Itália e o mundial de França: «Partimos para Marselha, para defrontar a Noruega, e fomos cair no centro de uma tempestade. Injustamente, a partida foi envolvida num espetro polémico-político. Os nossos jogadores representam orgulhosamente a pátria e não têm nenhum interesse político, Apesar disso, milhares e milhares de emigrantes italianos criaram um ambiente intimidante. Sobretudo porque, ao contrário do que eu lhes disse, ao fazerem a saudação de braço estendido, não fixaram os olhos no infinito e observaram a raiva dos compatriotas nas bancadas o que mexeu com eles de fora categórica». Sentindo que a equipa se deixara abater, Pozzo soltou um grito: «Squadra attenti. Saluto». E os jogadores repetiram a saudação fascista. «Foi uma demonstração clara de que não tínhamos medo», explicaria o treinador que, cinco anos mais tarde, se encontrava do lado dos partigiani, auxiliando na fuga de muitos antifascistas para a Suíça.
A eliminatória seguinte, em Paris, no Estádio de Colombes, face à França, exacerbou o espírito anti-italiano. Já não eram apenas os refugiados a manifestarem-se ruidosamente contra a equipa que Mussolini recebera com requintes principescos no Quirinale, em Roma, antes da partida para França. Todos os franceses se lhes juntaram numa manifestação de ódio latente que, pelos vistos, motivou os jogadores italianos para uma exibição de categoria. Vittorio Pozzo tinha uma enorme energia mental. Resumiu: «Noi, paghi di aver vinto la battaglia del­la intimidazione, giuocammo!». Jogaram. E bem.

A despeito de toda a envolvência hostil, a Itália bateu a França (3-1) e o Brasil (2-1) até chegar à final com a Hungria, no Estádio de Colombes. O espetáculo derradeiro foi magnífico e os italianos renovaram o seu título mundial com uma vitória formidanda (4-2). A final de Paris deixou a política de fora. Apesar de a grande maioria do público ter apoiado os húngaros, a squadra azzurra recebeu a taça Jules Rimet no centro de aplausos merecidos. Eram, indiscutivelmente, os melhores do mundo.