A dança dos nomes

A mudança de nomes de ruas, praças ou obras públicas são atos ilegítimos: que direito tem um regime de se apropriar de obras feitas por outro?

Quando cheguei a Maputo há uns anos, olhando os prédios e as avenidas, tive a impressão de estar numa cidade portuguesa bem organizada (embora um tanto degradada): moradias bem desenhadas, dos anos 50 ou 60, grandes edifícios ao estilo ocidental, como poderíamos ver na Avenida da República. Mas olhando para o nome dessas artérias, fiquei estupefacto: Avenida Karl Marx, Avenida Julius Nyerere, Avenida Ho Chi Min, Avenida Mao Tsé Tung…
Claro que eu já sabia que na antiga Lourenço Marques tinham trocado os nomes do tempo colonial por ídolos revolucionários. Mas uma coisa é saber e outra é ver. Uma coisa é ler nos livros e outra é ver ao vivo avenidas que sabemos construídas por portugueses, planeadas por portugueses, que podiam pertencer a uma cidade portuguesa, ostentarem placas com os nomes de Marx ou Mao Tsé Tung.

E eu pergunto-me: será isso, para além de absurdo, legítimo? Será legítimo tirar o nome de uma rua ou avenida feita por outros noutra época e rebatizá-la a nosso bel-prazer? Não será isso um ‘roubo’ de propriedade? 

Não se pense com isto que quero ‘cobrar’ alguma coisa aos moçambicanos. Nós fizemos o mesmo: pegámos na Ponte Salazar e mudámos-lhe o nome para Ponte 25 de Abril. Pegámos no aeroporto da Portela e pespegámos-lhe o nome de Humberto Delgado. Com que direito? O 25 de Abril teve alguma a coisa a ver com aquela ponte? Humberto Delgado teve alguma a coisa ver com aquele aeroporto? Sendo certo que foi secretário de Estado da Aeronáutica, quando assumiu este cargo já o aeroporto fora inaugurado. 

Dir-se-á que a ponte, ou o aeroporto, não pertencem a nenhum regime, nem a nenhum homem, mas ao povo português. E é verdade. Mas não é menos verdade que há regimes e há homens que têm maior capacidade de realização do que outros. Sabemos que há povos que durante certos períodos não constroem nada, e noutros mostram uma grande capacidade de realização. E isso depende dos líderes. Assim, sendo a ponte ‘do povo português’, não deixa de estar ligada a um regime – o Estado Novo – e a um homem – Salazar. 

Se um regime quer honrar os seus heróis, os seus ídolos, as suas figuras, construa as suas obras e ponha-lhes esses nomes que admira ou venera. Se Moçambique queria honrar Marx ou Mao Tse Tung, construísse avenidas dignas desses nomes; não devia era ter pegado em avenidas construídas por portugueses e trocado os seus nomes pelos de pessoas que nada tiveram que ver com elas. Nem sabiam que existiam…

Não me chocaria se à Ponte Vasco da Gama tivessem dado o nome de Ponte 25 de Abril. Seria razoável. Como razoável seria chamarem-na Ponte Cavaco Silva ou até Ponte Ferreira do Amaral. Agora, chamarem 25 de Abril a uma ponte inaugurada oito anos antes, em 1966, é que não faz nenhum sentido.

Ainda percebo que, numa mudança de regime em que o culto da personalidade era obsessivo, como na atual Coreia do Norte, onde a cada esquina se vê uma estátua do líder, uma fotografia do líder, uma referência à família do líder, se mudem os nomes. Mas não era, de todo, o caso de Portugal. Após 40 anos de salazarismo, as estátuas de Salazar contavam-se pelos dedos e as ruas, praças e bairros com o seu nome a mesma coisa. Sendo um tímido, Salazar não gostava de aparecer em público, discursar para ele era uma ‘tortura’, e não se sentia confortável em ver a sua figura ou o seu nome espalhados por ruas, praças ou… pontes.

Curiosamente, ao ser-lhe comunicado que a ponte se chamaria Salazar, este reagiu – sugerindo que lhe dessem outro nome, até porque assim poupariam no futuro o trabalho de o mudar… Acertou.

E uma das poucas estátuas de Salazar existentes no país teve um triste destino. Em Santa Comba, o concelho onde nasceu, existia uma estátua sua em bronze, da autoria do escultor Leopoldo de Almeida, que era uma peça interessante. O então chefe do Governo surgia numa pose pouco convencional, sentado descontraidamente num cadeirão, como se estivesse a conversar com alguém. Não era uma escultura ‘heroica’, nem de glorificação de um ‘chefe’: era a imagem de um homem normal.

Ora, após o 25 de Abril, cortaram-lhe a cabeça e roubaram-na. Então, um grupo de emigrantes da região quotizou-se, mandou fazer uma cabeça nova, e a estátua foi restaurada. Um tempo depois, porém, alguém pela calada da noite lá colocou uma carga de dinamite –  e a escultura desfez-se em mil pedaços. Salazar deixou de existir em Santa Comba.
Convenhamos fazer pouco sentido que, na estatuária ou na onomástica de ruas, calçadas ou praças, não existam hoje quaisquer referências a um homem que governou Portugal durante 40 anos, como se esse tempo não tivesse existido. 

Dir-se-á que era um ditador. E é verdade. Mas era um ditador manso, não era um facínora nem um sanguinário. E instituiu uma ditadura que foi mais consentida do que imposta: se houvesse eleições nessa época, Salazar tinha-as ganho quase todas, talvez com exceção das de 1958, com Delgado. 

Nas primeiras décadas no Governo, Salazar conquistou um enorme capital de simpatia, primeiro como ‘mago das finanças’, depois com a pacificação da vida pública, a recuperação do ‘orgulho nacional’, a neutralidade na 2.ª guerra mundial. Só a partir de 1961, com o início da guerra colonial, o salazarismo entrou em declínio – mas mesmo assim, no início da guerra, ela tinha o apoio da maioria. 

E há outros ditadores da nossa História, muito mais violentos, que têm posições de destaque nas cidades portuguesas – a começar pelo marquês de Pombal…

Em conclusão, salvo em situações excecionais, a substituição dos nomes das ruas ou praças é ilegítima, bem como a remoção de estátuas – que acaba por ser um ato de ‘vandalismo oficial’. Ainda é aceitável a recuperação de nomes antigos que foram rebatizados – como Leninegrado voltar a chamar-se S. Petersburgo; agora chamar 25 de Abril a uma ponte construída no tempo da ditadura não lembra ao careca. 

Repito: se um regime quer glorificar os seus heróis ou os seus ídolos, construa ruas, avenidas e praças, dê-lhes os nomes que entender, decore-as com as estátuas que entender, mas não se aproprie do trabalho dos outros. 
Assim fez Salazar, que construiu a sua obra mas não mudou o nome à Avenida da Liberdade nem apagou do país os nomes de figuras da República como Afonso Costa ou António José de Almeida.