Obituário. Lawrence Ferlinghetti

Fundador da histórica livraria e editora City Lights, em São Francisco, Ferlinghetti foi a presença mais constante e a personificação mais lúcida da contra-cultura norte-americana ao longo do último século, sendo pioneiro na crítica do materialismo e na defesa dos valores ambientais.

O ardor revolucionário nunca lhe faltou, mesmo se, ao longo desse século que ele viveu como poucos, não sentia que o movimento da história veio muitas vezes encorajá-lo. O certo é que Lawrence Ferlinghetti nunca abriu túmulos, como também nunca se viu entre a fauna processional que gosta das celebrações quando já não há nada a fazer, que passa a vida nos cemitérios da arte. A sua revolta começava por aí, por preferir os aborígenes da arte, e se distanciar de tudo o que lhe cheirasse ao pedantismo que leva a poesia a desinteressar-se da vida, do desejo de transformá-la numa obra de arte. Ferlinghetti estava sempre metido onde o seu instinto lhe dissesse que as coisas pudessem dar a volta. 

Nascido em Yonkers, no estado de Nova Iorque, foi criado por uma tia e, depois, por pais adotivos. Pilotou um caça-submarinos da Marinha nas traiçoeiras águas que banhavam a costa da Normandia no dia 6 de junho de 1944, e um ano e dois meses mais tarde foi testemunha da «paisagem infernal» do que restou da explosão nuclear em Nagasaki. Não era por isso um homem que se alimentasse de ideais, mas conhecia bem o terror, a praga das decisões que uns poucos homens tomam condenando tantos à miséria e à morte, mais tarde, mesmo tocado por tudo isso, escreveu uma tese de mestrado sobre John Ruskin na Universidade de Columbia, seguiu depois para Paris onde estudou poesia francesa na Sorbonne, e, do lado oposto a Notre Dame, descobriu a livraria de língua inglesa conhecida como Le Mistral, e que é hoje a célebre Shakespeare and Co. Ficou amigo do seu dono, George Whitman, e foi com ele que aprendeu a lição que seguiria depois em São Francisco, quando em 1953, com Peter Martin (filho de um grande anarquista italiano, Carlo Tresca), fundou a City Lights, livraria e editora que nutriu o círculo que acabaria por dar forma à Geração Beat.

A lição era simples, e passava por não levar a parte do negócio muito a sério, preferindo assumir que nada é mais exemplar e heroico do que um fracasso que abre as portas todos os dias para lembrar que o dinheiro pode saber muito sobre as ambições e demais fraquezas dos homens mas não percebe patavina do que respeita às suas aspirações e grandezas. Em 1956, na sequência da edição de Uivo, de Allen Ginsberg, foi preso, acusado de obscenidade, e arrancou um marco legal decisivo ao lutar em tribunal pela liberdade de continuar a editar aquele livro, fixando os princípios nos quais assenta a interpretação da Primeira Emenda, sobre a liberdade de expressão. Foram os advogados Al Bendich e Lawrence Speiser, da American Civil Liberties Union, juntamente com o lendário litigante Jake Ehrlich, quem o defendeu no caso contra ele movido pelo Estado da Califórnia, mas foi Ferlinghetti quem melhor soube enquadrar aquele caso num exemplo de repúdio pela censura ao defender que «não é o poeta mas aquilo que ele encara cuja obscenidade é revelada». E acrescentou: «Os senhores que presidem à devastação obscena de Uivo eles mesmos o produto de um mundo mecanizado que só gera desperdício, e que no seu útero origina as ruínas futuras que resultarão dos arsenais nucleares e da demência dos nacionalismos».

Sempre mais inspirado pela vida do que pela literatura, a sua doutrina era um embalo, uma forma de «resplendente radicalismo», como o designou o escritor John Nichols, que testemunhou a forma como Ferlinghetti foi renovando o seu encanto com as sucessivas gerações, numa ansiedade de romper com as estruturas e poder. Assim, esteve sempre na dianteira, e uma década antes dos hippies terem instituído o Verão do Amor, já ele havia denunciado o materialismo no seu primeiro livro de poemas, A Coney Island of the Mind, renunciando «ao continente de betão/ espaçado por insossos cartazes/ ilustrando ilusões imbecis de felicidade». Antecipou e amplificou as lutas dos direitos civis nas décadas de 1960-70, e foi dos primeiros a reconhecer a importância decisiva do movimento pela justiça climática.

Muitas vezes descrito como um anarco-pacifista, enquanto poeta Ferlinghetti tinha o dom de pressentir as transformações que deslocam isso a que chamamos realidade. «O Polo Norte já não está onde antes o podíamos encontrar», escreveu ele. A poesia era esse rumor das coisas a deslocarem-se, essa capacidade de se desembaraçar de uma consciência que nos amesquinha, recriar-se, operar transfusões de sangue entre noções e ideias tão fortes que exigem bem mais que uma inclinação por frases de belo recorte. Quanto à escrita, aquilo que lhe interessava, mesmo no fim, sentado no Café Trieste em São Francisco, sentindo que haviam passado décadas mas tudo permanecera na mesma, na sua autobiografia, Rapazinho (ed. Quetzal), diz que «a única história deste livro da minha vida é o meu constante envelhecimento», e sentindo que só faltava dar tempo à morte para que viesse buscá-lo, enquanto um Deus ou algum Godot que prometeram vir não chegam, lembra-se dessas figuras que o marcaram para toda a vida, de George Whitman em Paris com quase cem anos, de Giacometti que parecia ter deixado de comer de tão compenetrado que estava na recriação de si mesmo naquelas «figuras tão secas», e recorda Beckett, que «tinha uma consciência enxuta de si mesmo tal como a sua escrita, seca e sem atavios, como a carne das palavras, e escrevia tão-só o osso exposto e assim o vi uma vez nas traseiras do Café Select em 1948 enrolado num sobretudo fino e a tremer de frio no inverno de Montparnasse».

Talvez por tudo o que tinha já vivido, Ferlinghetti não embarcou no deslumbramento ou nos delírios daqueles jovens que lhe apareceram tocados, de um lado, por um génio exultante mas, pelo outro, atravessados por uma ilusão que haveria de dilacerá-los nessa hora em que a solidão toma conta de tudo. Assim, fala dos seus heróis vendo-os resumidos a essa carne que se confunde com as sombras que projeta, fala de Beckett, «sempre uma sombra de si mesmo como o Giacometti e o T.S. Eliot na sua terra devastada tão magro como o Prufrock com as suas calças de dobra e pensando bem como o William Seward Burroughs outro Homem-Sombra, el hombre invisible como lhe chamavam, sempre a viver de expedientes sempre em cima do acontecimento e sempre preparado para dar aos calcanhares se a bófia aparecesse». Talvez por isso não lhe agradasse demasiado o ver-se associado ao movimento Beat, rótulo de que nunca mais se livrou, acabando por aceitar o título de «padrinho espiritual» dessa vaga literária que varreu os EUA a partir da década de 1950. Não lhe agradava o furor mediático que às tantas cercou a coisa, e insistia que tudo não tinha passado de um golpe, uma invenção da arguta mente publicitária de Allen Ginsberg. De resto, detestava carros, chamando-lhes «o motor de combustão infernal», e a certa altura até se cansou de uma certa farra e fanfarronice, tendo brincado com o célebre verso que abre Uivo («Eu vi as mentes mais brilhantes da minha geração destruídas pela loucura, famintas histéricas nuas»), dizendo «Nós vimos as mentes mais brilhantes da nossa geração destruídas pelo aborrecimento das leituras de poesia».

De cada vez que cedia uma entrevista e as perguntas o levavam para esse país estrangeiro que é o passado, obrigando-o a marcar os incidentes e episódios que fizeram dele quem era, fazia questão de trocar as voltas à coisa, elaborando umas ficções, variando a narrativa, ensaiando saídas. Preferia de longe «o horizonte da nossa carne/ moída de sol/ muda de estupefação/ entre o ato do sexo/ e o ato da poesia». A grande virtude do seu estilo é um gozo da rapidez, uma certa ligeireza, a pincelada enfática e que não abre margem a grandes revisões nem remorsos, em vez de grandes considerações sobre os temas ou episódios, alude, condensa, ainda que recorra a repetições, uma gramática rítmica, uma fluidez sintática que adianta a mancha de texto como sombra para a voz, esse lado declamatório que impregna desde a raiz a sua obra, de resto, em tom de piada, falava no fluxo de consciência que usava como sendo um registo na «quarta pessoa do singular».

Lendo os melhores poemas de Ferlinghetti, o que se sente é uma clareza e uma confiança própria de quem tem uma mente crítica e arejada, num verso que toma da prosa o seu desassombro, a jovialidade cacofónica de um país que acredita ainda no quinhão da aventura, misturando a influência de poetas como Apollinaire e Prévert, de quem traduziu para o seu selo Paroles, e é claro que há sempre uma falsa ingenuidade, uma forma de criar confiança, atrair o mundo e desancá-lo sem impor um tom de irritação na voz, daí que tenha sempre os dicionários da luz abertos, para trocar as trevas por miudezas calmantes, mas que não deixam que se atire para trás das costas o que importa. Como ele dizia, «se me perguntam se vou não com os Poetas da Derrota mas sim com esses desbravadores que levam um sim como passaporte, sim, como Whitman e Henry Miller, sim, é com eles que vou». Mais? «Estou à espera que chegue a vez do meu processo/ e estou à espera de um renascimento do maravilhoso/ e estou à espera de alguém que descubra realmente a América». Noutros versos advertia: «Não escorregues na casca de banana/ do niilismo, mesmo que dês por ti a escutar/ o rugido do Nada».