A revisão pontual da Constituição de Angola

A revisão altera também o artigo 242º da Constituição, abrindo espaço para a discussão do tema da institucionalização e autonomia das autarquias locais. Esta institucionalização, a ser discutida a nível parlamentar, podê-lo-á ser agora, mais livremente, e na busca de consensos operacionais, entre Governo e Oposição.

por A.P.N

A Constituição de Angola em vigor, a Constituição de 5 de Fevereiro de 2010, representa, como se pode ler no seu Preâmbulo, “o culminar do processo de transição constitucional iniciado em 1991 , com a aprovação, pela Assembleia do Povo, da Lei nº 12/91, que consagrou a democracia multipartidária, as garantias dos direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos e o sistema económico de mercado”, mudanças aprofundadas, mais tarde, pela Lei da Revisão Constitucional nº 23/92.

Representava a evolução do processo histórico-político do país pós-Independência em 1975. Em 1975, em plena Guerra Fria e num momento em que a União Soviética parecia estar em vantagem nessa confrontação, a Constituição reflectiu o modelo então dominante no bloco socialista, um modelo monopartidário e de economia dirigida. Esta Constituição de 1975, sofreu, em 1980, algumas alterações.

O impacto da guerra civil e das negociações para lhe pôr termo, foi essencial na determinação das Leis Constitucionais que, em 1991-1992, acompanhando o processo de paz de Bicesse e no quadro da preparação das primeiras eleições multipartidárias de 1992, introduziram o pluralismo partidário. Infelizmente, não seria logo que o país entraria em paz e consolidaria as instituições democráticas. Seriam precisos cerca de mais dez anos para essa concretização, com o Acordo Geral de Paz de 4 de Abril de 2002. Nesse momento histórico, Angola enquadrou-se numa linha de democratização do Continente. Dos mais de 50 Estados africanos independentes, até esta data, talvez apenas 20% tivesse tido governos eleitos em eleições livres e plurais. Desde então o panorama mudou e houve uma tendência para a pacificação e democratização.

 

A regra regional do Presidencialismo

Angola concretizou bem o seu processo de paz e reconciliação nacional, sobretudo através da integração dos quadros militares da UNITA nas Forças Armadas. Entretanto, no final do processo de revisão constitucional que levou à redação e aprovação da Constituição de 2010, os deputados da oposição não estiveram presentes. A base principal desta recusa estava na contestação ao modo aprovado para a eleição do chefe de Estado, do Presidente da República que, em vez de uma eleição especial, paralela ou simultânea à eleição parlamentar, a Constituição angolana de 2010 determinou que o Presidente fosse o cabeça da lista do partido vencedor dos candidatos à eleição parlamentar. Foi pena, esta ausência.

A Constituição angolana de 2010 é, como a maioria das constituições África subsaariana, uma Constituição presidencialista. O Presidente da República é também o chefe do Executivo e o centro do sistema. Esta regra é praticamente absoluta em toda a região e explica-se no enquadramento histórico e sociológico das lutas pela independência, das guerras civis, das intervenções militares e dos modelos unipartidários e autoritários fundacionais e sua evolução para a democratização do regime. O presidencialismo é o resultado do gradualismo democrático.

É nesse espírito que se deve entender e interpretar a nova proposta de revisão pontual da Constituição de Angola e que responde à ideia de esclarecer alguns aspectos “ou formas que se afiguram pouco claras”, mas também de acompanhar a evolução do país e dar um maior protagonismo Às instituições e à sociedade civil.

 

A partilha do poder

As linhas gerais das propostas revelam uma geral vontade de maior partilha dos poderes presidenciais com outros órgãos de soberania, nomeadamente com o Parlamento: assim regista-se com uma maior independência atribuída ao BNA (Banco Nacional de Angola), cujas competências ficam mais livres da interferência governamental; por outro lado a Assembleia Nacional passa a ter intervenção na nomeação do Governador do Banco Central, já que o candidato ao lugar é apresentado ao Parlamento pelo Presidente da República: aí é examinado por uma Comissão Técnica especializada. Também, em princípio, o BNA fica vinculado a enviar relatórios periódicos quer para a Presidência quer para a Assembleia Nacional.

Está também prevista uma maior autonomia orçamental e administrativa das futuras autarquias locais, deixando o seu Orçamento de fazer parte do OGE, senão na medida dos recursos que o poder central lhes destinar. As demais receitas e o critério de despesa ficam a cargo das próprias autarquias.

A revisão altera também o artigo 242º da Constituição, abrindo espaço para a discussão do tema da institucionalização e autonomia das autarquias locais. Esta institucionalização, a ser discutida a nível parlamentar, podê-lo-á ser agora, mais livremente, e na busca de consensos operacionais, entre Governo e Oposição.

O texto da revisão abre também espaço para novas formas de relacionamento e responsabilização da Presidência da República – e de outras magistraturas constitucionais, como o Procurador-Geral da República, o Provedor de Justiça, e a Comissão Nacional Eleitoral, com a Assembleia Nacional.

Na linha de redistribuição de poderes presidenciais com outras instituições vem também a restrição de alguns poderes até aqui discricionários do Chefe de Estado em matéria, por exemplo, do calendário eleitoral.

Também, no caso de uma vacatura do Vice-Presidente em exercício, o substituto era nomeado pelo Presidente, ouvido o Partido político mais votado. Agora invertem-se os termos da relação e passa a ser o Partido que apresenta ao Presidente uma proposta de novo Vice-Presidente, que o Tribunal Constitucional validará depois.

Há também a preocupação de alcançar a representação da sociedade civil. Assim no Conselho da República, até agora de 10 membros, com pessoas que na sua maioria ali estão por inerência, passa para 15 membros, abrindo a representação, expressamente, à sociedade civil.

É também considerada a abertura de um quarto braço da Administração Pública, a “Administração Independente”, a partir de entidades administrativas de origem privada, a que o poder público poderá reconhecer atribuições e competências.

São também previstas novas figuras de excepcionalidade constitucional: para além do Estado de Guerra, do Estado de Sítio e do Estado de Emergência – introduziu-se a Situação de Calamidade Pública – isto é, uma situação especial em que direitos fundamentais podem ser submetidos a condições e limitações especiais no seu exercício. A Covid 19 é considerada um caso típico de tal situação.    

É também regulado Governo de Gestão no sentido de restringir o conteúdo de iniciativas e decisões do Presidente da República, a partir do momento do início da campanha eleitoral. Deste modo, a partir desse início o Executivo não poderá tomar medidas de fundo, que condicionem ou determinem decisões ou limitações do futuro governo.

Também são previstas situações de inelegibilidade – por exemplo uma que já existia para os deputados, mas não para o Presidente – para as pessoas que tivessem sido condenadas a penas de três ou mais anos de cadeia.

Resolve-se também uma importante dúvida aberta no texto anterior: o Presidente que no decurso do seu segundo mandato se autodemitir não poderá ser candidato na eleição seguinte. Até agora, um Presidente no curso do seu mandato, poderia demitir-se, forçando nova eleição, e ser eleito, prolongando indevidamente a chefia do Estado. Agora irá passar a não ser possível.

 

Sentido da revisão

Finalmente, quanto aos eleitores angolanos residentes no estrangeiro: entre 1992 e 2010 havia um círculo de Exterior que elegia três deputados. A Constituição de 2010 restringiu o voto dos residentes no exterior a determinados casos que contemplavam ocorrências episódicas de residência ali – por doença, trabalho, estudo. A presente revisão restabeleceu o direito de voto para todos os cidadãos residentes no exterior e que estejam em plena capacidade dos seus direitos políticos.

Trata-se pois, se não de uma revisão exaustiva, – que não se justificaria – de uma introdução de disposições que representam uma linha de descentralização do presidencialismo constitucional dentro de um quadro em que os exigências regionais e conjunturais continuam a pressionar no sentido da centralização do poder.