Tiros de pólvora seca?

Há algumas semanas falei dos milhões que hão de vir da Europa, levantando muitas dúvidas sobre a sua eficácia. E não o fiz por pessimismo; não sou, por natureza, um pessimista. Fi-lo pelo conhecimento que tenho da história do país e do destino que tiveram outros ambiciosos planos. Citei a frase de um amigo, já…

Há algumas semanas falei dos milhões que hão de vir da Europa, levantando muitas dúvidas sobre a sua eficácia.

E não o fiz por pessimismo; não sou, por natureza, um pessimista.

Fi-lo pelo conhecimento que tenho da história do país e do destino que tiveram outros ambiciosos planos.

Citei a frase de um amigo, já falecido, que dizia que «dinheiro em África é chuva na areia».

É certo que não estamos em África – mas a rentabilidade dos cerca de 130 mil milhões que recebemos da UE desde 1986 mostra que a nossa situação não é muito diferente.

O dinheiro só produz efeito quando existem estruturas para o aproveitar de forma produtiva; caso contrário, escoa-se como água na areia.

Temo que grande parte do dinheiro da famosa ‘bazuca europeia’ vá desaparecer sem melhorias significativas na nossa capacidade de produção.

Mas vamos ao concreto.

Cerca de 70% dos fundos europeus irão para o Estado.

E serão aplicados em quê?

Na concretização da famosa ‘reforma do Estado’, de que se falava diariamente no tempo de Passos Coelho?

A reforma do Estado era a expressão mágica – o remédio para a nossa doença.

E agora? Já está feita ou deixou de ser necessária?

Dizia-me um dia o embaixador Cutileiro, também já falecido, que o problema da Função Pública era muito fácil de resolver: despedia-se metade dos funcionários e duplicava-se o ordenado aos outros.

Sem ser tão radical, parece-me evidente que o Estado precisa de uma reforma no sentido de ser mais leve, mais ágil e menos burocratizado.

As grandes estruturas são sempre difíceis de gerir.

Um Estado mais pequeno será mais operacional, terá maior versatilidade e rentabilidade, e não fará tanta resistência à mudança.

Não é isto, porém, o que se irá fazer com o dinheiro da ‘bazuca’.

Vamos, antes, ‘digitalizar’ o Estado que existe.

E o que significará isso, traduzido por miúdos?

Salvo honrosas exceções, significará comprar umas centenas de milhares de computadores, que daqui a quatro anos estarão obsoletos.

Ou seja, 70% do dinheiro da ‘bazuca’ de pouco adiantará.

Dentro de uns anos, aquilo para que serviu irá para o lixo.

E para onde irão os outros 30%?
 Irão para a recuperação das áreas da economia mais atingidas pela pandemia?

Para tentar reanimar o tecido produtivo que ficou moribundo?

Não: irão em boa parte para investimentos na ‘descarbonização’ e na ‘economia verde’.

É certamente interessante.

Mas temos de ter consciência que não vão tirar-nos do buraco.

Os investimentos são sobretudo rentáveis em setores onde já há know-how, onde já existe experiência e massa crítica.

Onde já há capacidade instalada e canais de comercialização a funcionar, designadamente no que respeita à exportação.

Se investíssemos fortemente no têxtil, no calçado, na cortiça ou na indústria automóvel, poderíamos obter um bom retorno.

Para não falar na hotelaria e na restauração, especialmente martirizadas pela crise.

Mas se vamos fazer coisas a partir do zero, a rentabilidade será mínima.

E isto conduz-nos ao terceiro ponto: o turismo.

Este tema já tem sido muito falado, mas não deixa de ser relevante.

Nos anos pré-pandemia, o turismo contribuiu em média com 10 mil milhões de euros por ano para a nossa balança.

10 mil milhões anuais!

Ora, considerando este altíssimo valor – e tendo em conta que o turismo é talvez o setor mais afetado pela pandemia –, será compreensível que não mereça uma única referência no plano de investimento?

Parece mentira, mas não é.

Por estas três razões – demasiado investimento no Estado e numa área onde o equipamento rapidamente se desatualiza, aposta em setores onde não há experiência em detrimento daqueles em que existe capacidade instalada, e omissão do turismo – temo que o PRR seja um conjunto de tiros de pólvora seca.

A não ser que as contribuições resultantes da sua discussão pública o alterem substancialmente.

Eu não digo que o Plano esteja mal feito.

O que parece é ter sido feito para outro país, com outros problemas.

O nosso país precisa de combater o gigantismo do Estado e o plano concentra 70% dos fundos no Estado; o nosso país tem alguns setores que funcionam bem e contribuem fortemente para a exportação e o plano concentra as baterias noutros focos; o nosso país tem um problema crítico no turismo e o plano não lhe dedica uma única linha.

Será tudo isto razoável?