“É pouco provável atingirmos a imunidade de grupo”

Um artigo na revista médica JAMA defende que a probabilidade de se atingir a ‘imunidade de grupo’ na covid-19 é baixa e por isso o melhor é preparar o próximo inverno. A ideia foge ao discurso geral de que se vai chegar lá quando 70% da população estiver vacinada – algo que o autor, Christopher…

 

Defendeu num artigo recente no Journal of the American Medical Association (JAMA) que será difícil, se não impossível, atingir a imunidade de grupo na covid-19 e que é preciso temperar o otimismo. Acredita que pode ser mesmo impossível?

Penso que é possível mas pouco provável. Para atingir a imunidade de grupo teríamos de conseguir níveis muito elevados de vacinação, uma vacina que funcione com crianças, boosters que respondam às novas variantes, por exemplo à sul-africana. Sem isso, não conseguiremos imunidade de grupo. Eventualmente, poderemos chegar à imunidade de grupo, mas acho pouco provável que isso aconteça antes do próximo inverno.

Mas está menos otimista? O discurso geral não tem sido esse…

Muito menos, sobretudo pelo que estamos a ver no Brasil e na África do Sul. Os dados têm vindo a sugerir que uma infeção passada com as variantes mais antigas não confere proteção contra as novas variantes brasileira e sul-africana e as vacinas que temos parecem funcionar cerca de 30% menos com as novas variantes. Estes dois fatores juntos contribuem para um menor otimismo.

Não sei se a comunicação tem mudado nos EUA, mas em Portugal continuamos a ouvir que o objetivo de chegar aos 70% de população vacinada, o que é apontado como limiar para a imunidade de grupo, será atingido no verão, em agosto. Acha que as autoridades, os decisores políticos, deviam mudar este discurso?

Penso que deviam. 70% de população vacinada ser garantia de imunidade de grupo teria funcionado com as antigas variantes. Com as novas, teremos de vacinar mais de 70% pessoas. E, por outro lado, quando geralmente se diz 70% as pessoas referem-se aos adultos, que é quem está a ser vacinado, e não à população total, que é o que é preciso ter em conta quando se fala em imunidade de grupo. E 70% dos adultos correspondem a 50% da população, o que não fica perto do limiar de imunidade de grupo. (Fazendo a conta para Portugal, de acordo com as estimativas de população residente do INE, em 2019  16,5% da população portuguesa tinha menos de 18 anos, pelo que quando 70% dos adultos estiverem vacinados, serão seis milhões de portugueses com a vacina, 58% da população). Portanto, para isso já precisávamos de ter uma vacina que fosse usada em crianças, isto ainda antes da questão das novas variantes.

Neste seu artigo refere que o conceito de imunidade de grupo é teórico mas na prática pode ser mais desafiante. No caso da covid-19, diz por exemplo que é preciso ter em conta que é um vírus sazonal, pelo que o nível de imunidade necessário para se ter esse efeito de bloqueio da transmissão pode ser maior no inverno do que no verão. No sarampo com 95% da população vacinada temos imunidade de grupo. Neste caso, podemos vir a ter mais uma situação como a gripe, em que não existe imunidade de grupo e se protegem os grupos mais vulneráveis?

Sim. Penso que a principal diferença é que o vírus do sarampo não sofre assim tantas mutações, e por isso temos uma vacina que tem permanecido altamente eficaz, com 98% de eficácia e por períodos prolongados. As crianças são vacinadas e basicamente ficam imunes para o resto da vida. Com a covid-19 temos tido uma rápida emergência de novas variantes, que começam a resistir aos anticorpos naturais e às vacinas. E tem-se revelado nesse aspeto mais parecido com a gripe.

No início a ideia era de que este era um vírus mais estável, com menos mutações do que o da gripe.

É verdade e houve alguma surpresa com a forma como entretanto têm sido detetadas novas variantes, com mutações comuns, mais transmissíveis, como a sul-africana e a brasileira. A inglesa também é mais transmissível mas não parece escapar às vacinas, mas isto tem de deixar-nos alertados. É possível que alguns surtos que tivemos no ano passado e que na altura não percebemos muito bem, como foi o caso de surtos no sul dos Estados Unidos no verão, tanto no Texas como na Florida, estivessem já ligados a variantes. A verdade é que não havia uma vigilância genética muito intensa e só depois da deteção da variante inglesa é que outros países começaram a aumentar a sua capacidade de sequenciação.

O alerta que deixa no seu artigo é que, perante esta incerteza, se continuarem a aparecer novas variantes, poderemos ter epidemias todos os invernos e é preciso preparar o próximo. Imagino que quando diga isso as pessoas digam ‘já chega’.

Sim, esse é o problema, as pessoas estão cansadas. Penso que o verão será calmo, como o verão passado. A minha preocupação é que se chegue ao próximo inverno e as pessoas não queiram ter os cuidados que tiveram neste, usar máscara, e aí poderemos ter potencial para uma grande transmissão. Espero que estejamos errados, mas acho que pelo menos isto deve fazer-nos planear que medidas poderão ser adotadas.

Mas não atingindo imunidade de grupo, o próximo inverno continuará a exigir medidas de distanciamento, máscaras, limitações aos convívios no Natal como tivemos em 2020?

É difícil saber. Acredito que, se houver uma epidemia no próximo inverno, não será tão má como foi este inverno, porque as vacinas ainda assim terão algum impacto. Algumas pessoas estarão dispostas a correr o risco de socializar. Mas isso pode levar a maior transmissão e as pessoas mais velhas, com maior risco por terem comorbilidades, poderão ter de ter mais cuidados, usar máscaras, evitar aglomerações. Sabemos que as vacinas da Pfizer e Moderna funcionam bem, mas a da AstraZeneca não funciona de todo, praticamente não tem efeito contra as novas variantes. Por isso é importante vacinar agora e eventualmente será preciso revacinar pessoas mais velhas ou de risco no final de outono, se houver melhores vacinas disponíveis na altura.

Com todo este esforço logístico que está a ser preciso agora e dinheiro que está a ser investido em vacinas, não pode haver alguma frustração de expectativas?

As vacinas são críticas e as pessoas devem perceber que sem vacinas as coisas seriam muito pior e poderíamos ter de voltar a medidas como confinamento, que se pretende evitar. Portanto, as vacinas serão sempre um custo menor comparado com o custo económico de ter de voltar a um confinamento.

Mesmo que se esteja apenas a comprar tempo, alguns meses?

Sim, há estimativas que demonstram que os custos das vacinas se recuperam em poucos dias em que a economia possa estar a funcionar.  (Em Israel, o custo de vacinar toda a população, 315 milhões de euros, foi comparado ao impacto de dois dias de confinamento).

Esta crise poderá mudar a forma como lida com o aumento da pressão sobre os hospitais no inverno? Antes da pandemia via-se sempre a questão pelo lado da capacidade de resposta dos hospitais e não da procura e este inverno vimos que houve muito menos gripe com as medidas implementadas. Faz sentido combinar as duas coisas daqui para a frente?

Sim, acho que precisamos de mudar a nossa cultura e passarmos a ser um pouco mais como os países asiáticos, em que o uso de máscara no inverno já era algo normal. Do lado dos hospitais também fica uma perceção diferente, de que é preciso planear e preparar os picos de procura. Já se preparam para o inverno e para a gripe, mas a combinação destes dois vírus vai ser mais desafiante.

Depois de um ano sem gripe, a próxima época pode ser pior?

O que sabemos com certeza é que haverá gripe. Se será um ano mau de gripe não sabemos. Alguns autores sugerem que quando há um ano moderado o ano seguinte é pior, mas estamos numa situação atípica. Não tivemos uma época ligeira de gripe por causa das variantes da gripe em si, mas porque as pessoas usaram máscaras, tiveram cuidado e isso conteve a transmissão. Ninguém sabe o que vai acontecer no próximo inverno.

Nas projeções que fazem no IHME a pior onda de covid-19 parece, no entanto, ter passado. Em Portugal não projetam uma nova onda, mesmo no pior cenário.

Pelo menos até ao verão acreditamos que o pior já passou. Mas estamos a ver na Europa de Leste e Central, República Checa e Hungria em particular, um recrudescimento importante da epidemia. São países onde a mobilidade é maior e o que nos mostra é que se não tivermos cuidados podemos facilmente voltar a ver os números a subir. As projeções são o que são, tudo depende da forma como as pessoas vão reagir no desconfinamento, se continuam a usar máscara e do comportamento do vírus. Mesmo com o aumento da cobertura da vacinação ainda não vemos uma descida no uso de máscaras e não é fácil perceber o que acontecerá quando isso começar a acontecer.