Algo de sinistro no olhar daquele carneiro

Fritz von Hanstein gostava de correr o seu número e o sinistro símbolo das SS desenhados nos cockpit – SS 333

Os ingleses gostam de tratar todos os alemães por Fritz, mas este não precisava da alcunha porque era mesmo Fritz de nome e, ainda por cima, um nome de encher a língua de cãibras, sendo como era de uma abastadíssima família prussiana: Fritz Sittig Enno Werner von Hanstein. No final dos anos 30, ainda muito jovem – nasceu em Halle, a 3 de janeiro de 1911 – deixou-se fascinar pelos uniformes das Schutzstaffel, as SS de Hitler, de tal forma que decidiu alistar-se para poder usar uma, não fossem elas, aliás, desenhadas pelo famoso costureiro Hugo Ferdinand Boss, que ainda hoje vende roupa para todos os cantos do mundo onde haja quem tenha dinheiro para alguma excentricidade etiquetada com o seu nome.

Huschke, como os seus amigos o tratavam, era um apaixonado pela velocidade e graças à fortuna do paizinho possuiu várias máquinas de alta cilindrada. Entre muitas outras coisas, os alemães, e em especial os prussianos, são teimosos como muares. A Fritz meteu-se-lhe a ideia fixa de conduzir carros em circuitos internacionais tal como Adolph insistia na superioridade de uma raça ariana, descendente dos deuses da mitologia nórdica, ignorando o facto de os arianos serem uma fruto de uma mistura de indo-iranianos com as suas raízes na Ásia Central antes de começarem a sua lenta caminhada em direção a ocidente com a inevitável miscigenação.

Claro que a família Hanstein, entupida até aos ouvidos com a distinção do seu sangue azul, capaz de desenhar a sua genealógica dinastia aristocrática até 1122, em Eichsfeld, na Baixa Saxónia, empinava o nariz e achava perfeitamente adequando que o jovem Fritz, além de se ter alistado, alimentasse uma forte amizade com o dr. Ferdinand Porsche a ponto de, a certa altura, a sua presença nas fábricas Porsche já ser tão frequente e habitual que ninguém sabia ao certo se se tratava de um engenheiro, assessor, relações públicas ou responsável pela propaganda. Tinha, sem dúvidas, um jeito muito especial para se meter em tudo. Não teve qualquer relutância em atirar para trás das costas o curso de Direito e não tardou a cumprir o sonho de dirigir os automóveis da marca.

Em 1937, as boxes de Le Mans foram percorridas por um murmúrio apreciativo com o seu quê de invejoso quando von Hanstein surgiu para fazer a sua estreia na prova, trazendo de braço dado a sua elegante companheira de corrida, Anna-Cecile Rose-Itier. Faziam, de facto, um belo casal, mas não foram além de quarenta voltas o que irritou profundamente Fritz a ponto de ter maltratado vários dos mecânicos que andavam por ali fuliginosos a trabalhar para ele à jorna. Nunca a frase fez tanto sentido: Havia algo de sinistro no olhar daquele carneiro.
A Europa já tresandava a pólvora e tremia ao som das botifarras alemãs quando Huschke obteve uma estrondosa vitória na prova das Mille Miglia de 1940, que ligava Bréscia a Roma e volta, desta vez conduzindo um BMW 328 coupé cujo motor tinha sido potencializado para 500 cc pelos engenheiros da Porsche o que estreitou ainda mais as suas relações com a marca.

Fitz gostava da rune das SS. Simplificando uma história que daria pano para muitas mangas, diga-se ao estugar do passo que as rune simbolizam alguma organização ou ideal. O BMW 328 de von Hanstein tinha, desenhado no cockpit, o seu número militar e a insígnia das SS (SS-333), aqueles dois esses sinistros encaixados em paralelo mas só com ângulos e nenhuma linha curva. Foi criado por Walter Heck, um SS Sturmhauptführer que trabalhava em design, em 1933. Ganhou o nome de doppelte Siegrune e, com a sua forma de raio duplo, tanto significava o duplo S de Schutzstaffel como expressava uma ideia pictórica de vitória. Um bom motivo para que Huschke não quisesse dispensá-lo enquanto arriscava a vida nas pistas de corridas.

A II Grande Guerra passou sem abalar grandemente o estatuto de von Heinstein, embora todas as suas propriedades tenham sido confiscadas pela emergente Alemanha Democrática. Mas Fritz tinha dinheiro que chegasse e sobrasse para, em 1950, já fazer parte do gabinete de imprensa da Volkswagen e, no ano seguinte, se instalar como responsável pelas relações públicas da Porsche. Toda a gente parecia querer ignorar que fora um soldado dos exércitos nazis de Hitler e Huschke tinha charme e talento para convencer os que com ele trabalhavam que nunca tivera qualquer tipo de simpatia pela política nacional-socialista e se limitara a ser um rapazito fascinado por uma farda.

Em 1956, obteve a sua segunda grande vitória. Na Targa Florio, disputada na Sicília. Ao tempo, estava transformado no melhor vendedor de automóveis da Alemanha e no homem que abriu as portas de todo o mundo para uma pequena marca chamada Porsche. Se continuava a ter o símbolo das SS, guardava-o no bolso, secretamente, como uma imagem da Nossa Senhora de Lurdes.

afonso.melo@newsplex.pt