O homem do futuro 

A Economist apresentou a imagem de uma sociedade perfeita – em que os indivíduos deixam de se relacionar fisicamente e fazem tudo através de uma máquina. Eu antevejo aí o fim da humanidade.

Há uns vinte anos fui convidado para fazer uma palestra na universidade de Trás-os-Montes sobre um tema à minha escolha. Propus-me falar sobre ‘o homem do futuro’.

A viagem para lá foi terrível. A ligação entre Lisboa e Bragança era feita  num pequeno avião de meia-dúzia de lugares. A meio da viagem, deparámo-nos com uma tremenda tempestade: chovia a cântaros e faiscavam raios. O avião abanava, não se via nada para fora e o ambiente na cabina ficou tenso. Um dos passageiros era meteorologista, de seu nome Dionísio Afonso Gonçalves, e comecei a perceber que estava preocupado. Foi várias vezes ao cockpit – que uma simples cortina separava da cabina onde seguiam os passageiros – e a certa altura disse que estávamos a voar «abaixo da altitude de segurança».

Imagine-se o que pensámos todos, que éramos leigos na matéria.

Segundo o contrato de adjudicação daquela rota, o avião tinha de fazer uma escala a meio da viagem, em Vila Real, para recolher passageiros. Ora, ao aproximarmo-nos do local, a visibilidade já era um pouco melhor e tive a sensação de estarmos a aterrar num porta-aviões: era uma pequena pista no meio da montanha, entalada entre dois cumes.

Mas tudo acabou bem.

Quando pensava que ia descontrair, esperava-me no hotel uma má notícia: de Lisboa, os meus filhos informavam-me que o nosso cão, o Paco, estava muito doente, ao ponto de nem conseguir subir para o sofá onde normalmente dormia.

Foi, pois, com o coração apertado que me dirigi à universidade para fazer a palestra. E isso talvez tenha afetado a performance. Mas o tema que escolhi para falar era de tal modo importante que ainda hoje o recordo com nitidez.

Falei, como disse, do homem do futuro. E qual foi a imagem que usei? Um indivíduo sentado todo o dia em frente do ecrã de um computador. Trabalhava através do computador; fazia a pesquisa através do computador; encomendava a comida através do computador; jogava através do computador; via filmes através do computador; sabia das notícias através do computador; falava com os amigos através do computador; namorava através do computador; até fazia sexo (virtual) através do computador… Para fazer a sua vida, não precisava de sair de casa nem sequer de se levantar da cadeira.

Apresentei essa imagem como qualquer coisa de terrível. De assustador. De desumano. De mortificante. O indivíduo deixando de se relacionar diretamente com a natureza e com outros seres humanos, reduzindo toda a sua vida às relações através de uma máquina.

Pois um dia destes a Economist publicou um trabalho sobre o futuro, dizendo aquilo que eu antevia há 20 anos – só que com a conclusão oposta: em vez de ser uma imagem aterradora, era a imagem da felicidade. A vida perfeita!

Segundo aquela revista, o trabalho online vai alargar-se praticamente a tudo, e as grandes organizações que conhecíamos, com um formigueiro de gente a trabalhar lá dentro, surgirão como elefantes brancos. Os trabalhadores de uma empresa poderão ser contratados em lugares diferentes do mundo e funcionar a partir de lá. As reuniões passarão a realizar-se todas por videochamada. O ensino será todo online. As operações financeiras também. E as consultas médicas sê-lo-ão em boa parte. E com as compras passar-se-á o mesmo, através de empresas globais como a Amazon.

Quanto às viagens turísticas, admite-se que serão reais (uma grande concessão…) mas ainda assim com um forte apoio digital.

Isto, repito, era apresentado como o paraíso na Terra.

E eu arrepio-me. Pergunto: e o contacto humano? As relações físicas entre as pessoas? As brincadeiras das crianças, os apertos de mão, os abraços entre amigos, os beijos dos namorados, os olhares cúmplices, os jogos de sedução, o calor resultante da presença de outras pessoas no mesmo espaço – onde ficará tudo isso?

Há muitos anos li uma crónica de Clara Pinto Correia que me impressionou enormemente. Ela trabalhava na altura num laboratório nos EUA, e um belo dia uma colega disse-lhe que ia dissecar um cadáver. Clara lamentou-lhe a sorte. E a outra, decidida, respondeu-lhe: «Enganas-te! Ao menos vou tocar em seres humanos!».

A ideia de que o contacto físico entre as pessoas vai desaparecer é o primeiro passo para o fim da humanidade. Nós pensamos que o progresso é sempre bom, mas não é assim: o homem pode inventar uma sociedade que o conduza ao abismo. Estou à vontade para o dizer, pois não sou especialmente sociável. Porém, percebo a importância de as pessoas se encontrarem, de rirem ou chorarem em conjunto, de conversarem umas com as outras a olharem-se nos olhos.

As redações dos jornais, que conheço bem, são espaços insubstituíveis onde se partilha informação, onde se discute acaloradamente, onde os mais novos aprendem com os mais velhos e vice-versa, onde o simples ruído das teclas do computador do colega é reconfortante pois lembra-nos que não estamos sozinhos.

E o que se diz para a redação de um jornal vale com certeza para muitas outras atividades.

Que sociedade tenebrosa estamos a construir?