Cavalos. Um ser humano como qualquer outro…

Da mitologia aos westerns, das grandes batalhas às revistas de quadradinhos, o cavalo foi desde sempre indispensável para os homens. Muitos tiveram histórias de vida que dariam romances. Outros tiveram as suas vidas retratadas em filmes.

Não é fácil resistir a virar do avesso a frase de Stanislaw Ponte Preta, um dos grandes cronistas brasileiros, em relação ao cachorro: «O cavalo é um ser humano como qualquer um de nós. Está aí Groucho Marx para prová-lo em Um Dia nas Corridas, quando se declara à mulher dos seus sonhos: «Sabes? Sou médico de cavalos. Promete casar comigo e nunca mais olharei para outro cavalo!» Convenhamos: o cão pode ser o melhor amigo do homem, mas a verdade é que a História nos ensinou que por detrás de cada grande homem há um grande cavalo. Sejam eles verdade ou mentira. Ou melhor, realidade ou ficção. Tal como Vinicius se saiu uma vez com a famosa expressão: «O whisky é o melhor amigo do homem! O whisky é o cachorro engarrafado!», podemos engarrafar os grandes cavalos da Humanidade. Comecem por onde quiserem.

Por exemplo, Átila, o rei dos hunos, que resolveu devastar a Europa na primeira metade dos anos 400, tinha uma paixão incontrolável pelo seu equídeo, Othar, e à sua garupa veio lá das estepes para pilhar a Grécia e entrar sem piedade pelas sobras do Império Romano. Átila ganhou fama de ser uma besta de 28 patas, mas consta que não era mau moço, simplesmente bárbaro. O nome, aliás, até é ligeiramente irónico para quem espalhou o terror pelas planícies da Europa central. É que Átila significa, na língua gótica, paizinho ou pequeno pai, algo que não é de meter medo a ninguém. Já Othar tinha outros pergaminhos, inculcados pelo próprio dono que avisava quem o quisesse ouvir que terra sobre a qual galopasse não voltaria a ver a erva crescer.

Há cavalos para todos os gostos e feitios e se vos disserem que sem cavalos o mundo de hoje não seria o que é, podem estar certos de que a afirmação é autêntica. Desde o puro-sangue inglês, vencedor de nove das suas onze corridas, entre 1814 e 1816, que levava o sugestivo nome de Filho da Puta, assim batizado por um irritadiço Sir William Barnett que se vira incomodativamente traído pela mulher, a Marengo, o cavalo de Napoleão, que conduzia à velha pilhéria da nossa infância – De que cor é o cavalo branco de Napoleão? -, o som dos cascos atravessam a existência do Homem. Napoleão teve vários cavalos, mas Marengo tornou-se um dos seus favoritos a ponto de ter um prazer especial em ser pintado montado nele. Depois da queda do imperador dos franceses, Marengo foi levado para Inglaterra e, indignamente para quem tivera uma tão intensa carreira em batalhas inolvidáveis, andou a ser mostrado de feira em feira até morrer, em 1831, com a provecta idade de 38 anos de idade. Neste momento encontra-se bem, exposto no Imperial War Museum de Londres, reduzido ao esqueleto.

Equinos mitológicos
Perdido nos labirintos da mitologia grega, temos Pégaso, o cavalo alado. É algo de inédito, mas alimentou a imaginação de milhares e milhares de autores que o enfiaram nos seus livros e filmes. Segundo a etimologia do grego antigo, Pégaso significaria Fonte dos Oceanos, cumprindo o batismo do lugar em que nasceu, o exato lugar onde Perseu encontrou Medusa, defendendo alguns que o equino veio ao mundo no jato de sangue provocado pela espada do herói quando atingiu o pescoço da mulher que usava serpentes no lugar do cabelo, sendo de prever que o seu penteado fosse permanente.

Nas mais diversas mitologias, há cavalos para dar e vender. Epona, a deusa gaulesa; Falhófnir, na Finlândia; Hipocampus, o corcel que puxa a concha gigante de Poseidon, rei dos mares; o Mares de Diógenes que só se alimentava de carne humana; Sleipnir, o cavalo de oito patas de Odin; Uchchaihshravas, a montada de Indra, adorado pelos hindus. Habitam naquele limbo onde a fantasia e a realidade por vezes se sentam frente a frente. Muito provavelmente só se encontram mais cavalos do que na mitologia se formos à procura deles no velho oeste e nos westerns que encheram, em tempos, salas de cinema com gente pendurada até nos lustres.

Os americanos, lá a Oeste de Pecos, resolveram dar um nome a esse tipo de equídeos misturados de estrelas de filme, barato ou caro, conforme os orçamentos das produtoras: Wonder Horses – Cavalos Maravilha. Segundo os especialistas da sétima arte, o primeiro Wonder Horse foi Tony, o companheiro inseparável de Tom Mix. Tony não se limitou a ser protagonista em diversos filmes que tiveram o seu nome no título, como foram os casos de Just Tony (1922), Oh! You Tony (1924) e Tony Runs Wild (1926). Entre 1922 e 1932 participou e 34 películas e, claro está, tinha a capacidade de perceber tudo o que lhe diziam, embora ninguém conseguisse atingir a fina ironia e a fantástica sagacidade de outro colega seu, este da banda desenhada, chamado Joly Jumper, o cavalo de Lucky Luke e emérito jogador de xadrez.

Pensando bem no assunto, talvez não tenha existido um cavalo mais famoso na história do cinema – vou deixar propositadamente de lado as tardes de fim-de-semana em que uma série juvenil inglesa, baseada no livro clássico de Anna Sewell, passava na RTP, com a ação a decorrer na Inglaterra rural do século XIX, na qual o majestoso Black Beauty, o cavalo negro do título, protagoniza várias aventuras, na companhia do seu dono, o Dr. James Gordon, e dos seus filhos – do que Trigger. Era mais o que uma meio de transporte, era mais do que um animal de estimação, era um amigo, um companheiro.

Pertencia a outra das cintilantes estrelas dos westerns, Roy Rogers, e surgiu em 81 filmes e 101 episódios de séries televisivas. Trigger ganhou a fama de cavalo mais inteligente da história do cinema e a sua capacidade para entender o que se pretendia dele chegava a ser assustadora. Glenn Randall, o seu treinador, descrevia-o como sendo praticamente humano. Foi levado a Nova Iorque e apresentado no Hotel Astoria como um fenómeno. Protagonizou um espetáculo que deixou vários papalvos de boca aberta e a babar na gravata, desde abrir  portas e janelas, a dançar e fingir-se de morto.

Se houvesse alguma forma de apepinar Trigger era gritar «Hi-yo Silver!». Afinal, surgido em 1938, atraiu sobre si as luzes da ribalta ao tornar-se tão inseparável de Lone Rangers, o Mascarilha, como Tonto, o índio das penas de corvo. Outros surgiram nos anos seguintes: Fury, protagonista de uma série televisiva de 1950; Cochise, o cavalo de Little Joe em Bonanza; Phantom, o cavalo branco que fazia contraste total com a farda do seu dono, Zorro, ou Tornado, o seu substituto em tons de preto; Mister Ed, TheTalking Horse, concorrente de Francis, The Talking Mule, dois pobres equídeos obrigados a dizer tantos disparates de humor duvidoso como a ensaiarem caretas de cada vez que se dirigiam às câmaras.

De Bucéfalo a Incitatus
Comanche também fez vida no Oeste americano, mas a sério, correndo risco de vida a cada minuto que passava. Montado pelo capitão Miles Keogh, membro da U.S. Cavalry, viu crescer em seu redor a fama de ser o  único sobrevivente da batalha de Little Big Horn, onde o general Custer e o seu 7º de Cavalaria levaram para assar dos chefes índios Crazy Horse e Sitting Bull. Comanche ficou gravemente ferido em combate mas esteve longe de ser o único a sair de lá com vida. O desaparecimento das montadas deveu-se, maioritariamente à pilhagem feita pelos vencedores, reduzindo a cavalaria americana a um grupo maltrapilho de homens a pé.

Se na epopeia de Cervantes, D. Quixote, tivemos uma pileca desgraçada chamada Rocinante,na poesia mongol, um velho épico de autor desconhecido, conta-nos a lenda d’Os Dois Cavalos Brancos de Genghis Kahn. Percorreram ambos milhares de quilómetros, vindos lá dos confins da Ásia, e enquanto o mais velho ia definhando com saudades de casa, o mais novo ia-se fortalecendo com o odor das vitórias a cada batalha. Maior caminhante que ambos, só certamente Bucéfalo, ou o Cabeça de Boi, o cavalo de Alexandre o Grande que tinha um olho castanho e outro azul e seguiu com o seu dono pelos caminhos que os conduziram à índia depois da tomada de Niníve e da Babilónia. Alexandre, que se dizia descendente de Aquiles, seguia o princípio do seu alegado antepassado: «Os meus cavalos ultrapassam todos os outros porque são imortais. Foram oferecidos a meu pai Peleus por Poseidon e eu herdei-os». Bucéfalo viveu trinta anos. Morreu vítima de golpes mortais durante a batalha de Hydaspes, no ano de 326 AC, e Alexandre ergueu uma cidade em sua honra, na margem esquerda do rio Hydaspes, e batizando-a de Bucephala. Hoje não passa de um lugar empoeirado no Paquistão com o nome de Jalalpur Sharif.

Mas, se Bucéfalo foi sempre tratado com o requinte que Alexandre o Grande lhe concedia, que dizer de Incitatus, o Impetuoso, a montaria do imperador romano Calígula, que teve um curto reinado de 37 a 41 DC? Calígula era um homem impiedoso e sem o mínimo de respeito pela vida humana. Por outro lado adorava Incitatus e tratava-o como se fosse uma das figuras mais importantes da Roma de então. Tinha sido trazido da Hispânia, grande fornecedora de cavalos para Roma, e o historiador e poeta Suetónio, revelou na biografia que deixou escrita sobre Calígula, que Incitatus tinha 18 tratadores 24 horas por dia às suas ordens, usava um colar de pedras preciosas em redor do pescoço, dormindo no meio de mantas de cor púrpura, cor que era somente destinada a trajes imperiais. Não contente, Calígula mandou erguer-lhe uma estátua à escala natural e incluiu o seu nome no rol dos senadores de Roma com salário correspondente. Pretendeu elegê-lo como cônsul mas não teve tempo para isso. Quando o povo de Roma se rebelava contra quem os governava, apelidando-os de cavalgaduras, não andava tão longe da verdade quanto isso.

Como se prova, raros bichos haverá tão fundamentais como o cavalo. Leiam Shakespeare e Ricardo III, que trocava o reino por um cavalo quando se viu tombado no chão na batalha de Bosworth Field, decisiva na Guerra das Rosas que afastou definitivamente os Plantagenetas do trono inglês. Enquanto Ricardo gritava: «O meu reino por um cavalo! -, o povo chasqueava: «Por causa de um prego, perdeu-se uma ferradura; por causa de uma ferradura, perdeu-se um cavalo; por causa de um cavalo, perdeu-se uma batalha; por causa de uma batalha, perdeu-se uma guerra; por causa de uma guerra, perdeu-se um reino… Por causa de um único prego, perdeu-se um reino inteiro!».