Copiar os mestres

Durante séculos os artistas formavam-se copiando os mestres. Velázquez copiou Rafael e Manet copiou Velázquez. Mas qual será o equivalente na literatura?

E m outubro do ano passado, um editor amigo sugeriu-me traduzir um livro que ele queria muito publicar. Fiquei de pensar no assunto, pois sabia que assumir a tarefa iria consumir-me os poucos tempos livres que me restam. Mas logo nessa noite – ou no dia seguinte, já não consigo precisar –, abrindo ao acaso um livro de Maria Gabriela Llansol que tinha na cabeceira, apanhei uma página onde a escritora descrevia um sonho em que uma voz lhe ordenava: ‘Traduz, traduz!’. Não preciso de dizer que, se já estava inclinado a aceitar, mais convencido fiquei.

O editor que referi é Guilherme Valente, da Gradiva, e o livro é Civilização, de Kenneth Clark, uma adaptação da série de 13 episódios que o popularíssimo historiador da arte produziu para a BBC em 1969. A televisão a cores estava então a dar os primeiros passos, e David Attenborough, que era administrador da BBC, desafiou Clark, antigo diretor da National Gallery e conservador das Pinturas do Rei, a conceber uma série de História que permitisse explorar todas as potencialidades do novo meio. A série foi um sucesso estrondoso: até taxistas e porteiros abordavam Kenneth Clark na rua para falarem sobre pintura antiga.

Os desafios que me esperavam enquanto tradutor ficaram claros logo na primeira página. O título original do capítulo de abertura é ‘The Skin of Our Teeth’ – ‘a pele dos nossos dentes’, uma expressão usada quando alguém escapa por muito pouco. Escolhi ‘Por uma unha negra’ – desapareceram a pele e os dentes, mas ficou algo intermédio, até na dureza…
A narrativa de Clark começa em Paris: ‘I am standing on the Pont des Arts in Paris’. Traduzido literalmente, seria ‘Estou em pé na Pont des Arts’, o que resultaria ridículo: havia de estar o quê? Deitado? Poder-se-ia simplesmente prescindir do ‘em pé’, mas ia perder-se qualquer coisa. De modo que optei por: ‘Estou parado na Pont des Arts em Paris’. Desviando-me só um pouco do texto podia manter a ideia e a estrutura original da frase.

Não vos maço mais com estas minudências e dilemas com que todo o tradutor se depara. Até porque poderia dar uma ideia errada de um texto que é muito acessível e nada aborrecido. Dos alvores da Idade Média à era da bomba atómica, Clark traça o arco do desenvolvimento da civilização europeia, apoiando-se nas grandes obras e nos grandes nomes. Miguel Ângelo é sem sombra de dúvida o seu favorito, com direito a 54 referências, mas o autor não se limita de modo algum ao óbvio. Já perto do final, por exemplo, encontramos belas páginas dedicadas às proezas e fracassos do engenheiro Isambard Kingdom Brunel, como o túnel sob o Tamisa ou o Great Eastern, detentor do recorde de maior navio do mundo durante mais de 40 anos e com capacidade para quatro mil passageiros.

Suponho que hoje já não seja tanto assim, mas durante séculos os artistas formavam-se copiando os mestres (o Louvre continua a admitir copistas, uma tradição iniciada por Napoleão). Velázquez copiou Rafael e Manet copiou Velázquez. Mas qual seria o equivalente para um escritor? Durante muito tempo esta pergunta andou-me às voltas na cabeça. O facto é que copiar um texto é uma tarefa puramente mecânica que não exige qualquer espécie de talento.
Enquanto vertia Civilização para português fez-se-me luz. O equivalente literário de copiar uma pintura é fazer uma tradução. Não requer grande criatividade, é certo, mas exige que se compreenda o que se está a ver e que se domine o ofício. Por isso, tal como há boas e más cópias, também há boas e más traduções. Se a cópia for muito boa, nem se dá pela diferença. Na pintura, chama-se a isso falsificação; na tradução é o oposto: quanto mais parecida com o original, menor a traição ao autor.