Fausto Quadros: “A solução não é a morte”

Professor universitário defende que devia ter sido feito um referendo a questionar se os portugueses estão ou não de acordo com a eutanásia, porque, ao contrário do que acontece na  Alemanha e ou em Espanha, não podem queixar-se diretamente ao Tribunal Constitucional. 

A solução não é a morte. A solução é a vida com saúde». É desta forma que Fausto de Quadros reage ao ‘chumbo’ do Tribunal Constitucional (TC) em relação à lei da eutanásia e elogia o pedido que foi feito por parte do Presidente da República. Já em relação ao TC deixa dois reparos: «O Tribunal acerta quando entende que a lesão definitiva é um conceito vago ou indeterminado, havendo o risco de amanhã poder funcionar para tudo. Mas o Tribunal falha quando entende que o mesmo não se aplica ao sofrimento intolerável», diz ao Nascer do SOL, considerando que esta última situação poderia criar um precedente de «dar para tudo», acrescentando que o conceito de «sofrimento intolerável parece tão indeterminado como é a lesão definitiva».

O professor catedrático jubilado da Faculdade de Direito da Universidade Clássica de Lisboa chamou ainda a atenção para o facto de o TC se ter pronunciado sobre uma matéria que não foi pedida. «O Tribunal resolveu, por sua iniciativa, verificar se a lei violava o artigo 24, no.1,  da Constituição que fala da inviolabilidade da vida humana. Fez o Tribunal bem em se pronunciar sobre uma coisa que não lhe foi pedida?», questiona.

Para Fausto de Quadros não há dúvidas: «Em princípio, o Tribunal não pode julgar além do que é pedido. O Tribunal diz que teve  que se pronunciar sobre o artigo 24 porque entendeu que era impossível separar o juízo de constitucionalidade da lesão definitiva e do sofrimento intolerável com a inviolabilidade da vida humana. Mas não é claro que isso possa ser assim». E dá uma explicação: «Os direitos são suscetíveis de ser limitados por outros direitos, diz o artigo 18º, nº 2, da Constituição, em nome do princípio da proporcionalidade.  A lei diz que não há direitos absolutos e, portanto, pode haver limitações de uns direitos por respeito por outros direitos que estão na Constituição». Acrescentando: «Mas ao não falar em direito à vida mas na inviolabilidade da vida  o artigo 24º, nº 1, da Constituição está a afastar a vida da compressão recíproca com outros direitos para a considerar inviolável». 

É imperioso um referendo

Para o professor universitário, uma vez que os portugueses não podem recorrer diretamente ao Tribunal Constitucional para fazer uma queixa constitucional – ao contrário do que acontece na Alemanha e em Espanha – e já que a lei da eutanásia não estava contemplada nem nos programas eleitorais, nem, mais tarde, no programa do Governo, a solução deveria ter passado pela realização de um referendo, como aconteceu com o aborto.  «Houve aqui um défice democrático no tratamento desta matéria porque nem os cidadãos foram avisados previamente, nem os cidadãos foram ouvidos em referendo, quando 100 mil pessoas assinaram uma petição a pedir um referendo, nem os cidadãos têm acesso a fazer uma queixa constitucional direta ao Tribunal para o caso de quererem queixar-se desta federados violação da inviolabilidade da vida humana».

Fausto de Quadros lembra que, atualmente, só há quatro Estados europeus que aceitam a eutanásia, e um deles aprovou-a esta semana – Espanha, que se junta à Bélgica, Holanda e Luxemburgo . Uma situação que o leva a questionar por que razão outros países da Europa não seguiram o mesmo caminho. «Por que é que países como a Alemanha, Itália ou França não a têm? Por uma razão muito simples: entendem que é obrigação do Estado garantir o direito à saúde daqueles que estão em sofrimento ou que estão com outras lesões definitivas, nomeadamente criar clínicas de cuidados paliativos para dar resposta com vista ao menor sofrimento dessas pessoas».

E, além destes quatro Estados, dos 196 Estados membros das Nações Unidas só o Canadá, a Colômbia, a Nova Zelândia e alguns Estados federados da Austrália e dos Estados Unidos é que a aceitam. 

Para o jurista, cabe ao Estado a obrigação de investir na saúde: «É necessário criar condições, mesmo antes da eutanásia, para que as pessoas,  que para isso  pagam impostos, sejam devidamente tratadas. O direito à saúde está na Constituição. A solução não é a morte, a solução é a vida com saúde».

Uma obrigação que ganha maior revelo depois de Portugal ter assinado a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e de a ter integrado no Tratado de Lisboa – em que um dos artigos (número 35) indica que todas as pessoas têm o direito de aceder à prevenção em matéria de saúde e de beneficiar de cuidados médicos. Ao par  desse, o artigo 25 fala dos direitos das pessoas idosas, em que é lhes reconhecido e respeitado o direito a uma «existência condigna e independente e à sua participação na vida social e cultural» .

«Portugal comprometeu-se no Tratado de Lisboa, em relação aos idosos, a garantir uma existência condigna. Não é morte indigna por causa de um sofrimento, que pode ser tratado num psiquiatra ou num psicólogo para recuperar depressa para a vida que tem em frente», diz ao Nascer do SOL. «Não deixa de ser bizarro que Portugal aprove uma lei permissiva da eutanásia e do suicídio assistido no mesmo semestre em que preside à União Europeia, cujos Estados membros, na sua esmagadora maioria, rejeitam a eutanásia e o suicídio assistido». 

Qual alternativa?

Para o professor universitário, a solução em alternativa à eutanásia deveria passar por apostar «em melhor saúde pública e melhores cuidados paliativos».

Caso contrário leva, no entender de Fausto de Quadros, a prejudicar os mais pobres. «Porq ue é que os Estados africanos, asiáticos  e da América Latina não aceitam a eutanásia? Porque a eutanásia é contra os pobres. Aceitar a eutanásia é prejudicar os pobres. Os ricos, se estão com uma depressão ou em qualquer outro sofrimento, vão tratar-se, com um seguro privado,  ao médico privado, a uma clínica de luxo, que os atende em poucas horas e resolvem o problema». E acrescenta: «São os pobres que vão ter o ónus de mostrar que não há solução para eles no Serviço Nacional de Saúde e, não havendo assistência para a  doença deles, vão pedir – e há sempre alguém que os empurre para isso – para morrerem. Imagine esta situação num país em que há muitos idosos abandonados, como é o caso de Portugal». 

De acordo com o professor universitário, a eutanásia vai ainda deteriorar as relações dentro da família e na relação médico/doente. «As relações dentro das famílias vão-se deteriorar e nunca mais serão de confiança  porque os herdeiros podem ser estimulados a chegar mais depressa à herança. Não vão matar a mãe ou a avó, mas basta-lhes apoiar a depressão e, quando o idoso diz que ‘não está a fazer nada neste mundo ’, podem  responder ‘faça o que quiser, mas compreendemos a sua decisão de morrer porque está a sofrer muito’. Nem é preciso empurrar, basta que não se oponham a isso e  não incentivem o idoso a viver sem dor. A eutanásia envenena as relações nas famílias e isso é gravíssimo».

O mesmo cenário repete-se na relação entre médico e doente.  «Até aqui, o médico era a salvação para o sofrimento físico e psíquico. Mas a partir do momento em que a eutanásia for aprovada, essa pessoa, quando vir o médico  entrar em sua casa,  não sabe se o médico o vai tratar ou  lhe vai propor os tratamentos de suicídio assistido, que  são muito caros e com os quais o médico pode ganhar muito dinheiro. Na Holanda dizem que se criou uma autêntica ‘indústria da morte’ com clínicas que só vivem da eutanásia e do assistido suicídio e nas quais trabalham médicos que, contra a sua deontologia, angariam clientes». 

Marcelo é ‘contra’ a eutanásia

Fausto de Quadros e Marcelo Rebelo de Sousa foram durante muitos anos professores catedráticos de direito público na Faculdade de Direito da Universidade Clássica de Lisboa. Fausto de Quadros assegura que não é  verdade que Marcelo tenha alguma vez escrito, como constitucionalista, que a eutanásia era admissível em face da nossa Constituição. «Conheço todos os escritos de Marcelo Rebelo de Sousa enquanto professor e não encontro neles qualquer posição de aceitação da eutanásia em face da nossa Constituição». Esse esclarecimento surge na sequência de afirmações  em sentido contrário, feitas esta semana por alguns defensores da eutanásia, como Isabel Moreira.

Aliás, o atual Presidente da República, enquanto presidente do PSD foi um dos rostos contra o referendo do aborto, realizado em 1998, e que acabou por chumbar a legalização da interrupção voluntária da gravidez (só anos mais tarde aprovada por novo referendo).