Chuva de críticas a aplicação para registar consentimento

Em vez de medidas contra a violência sexual, a polícia australiana olha para soluções tecnológicas.

Está a meio de um encontro, a conversa fluí, puxou de uma garrafa de tinto e está a servir-se de um copo. Do outro lado da mesa, vê um olhar atrevido, uma expressão intrigada… Será que está na hora de puxar da aplicação para registar consentimento sexual, ou é demasiado cedo?

Por agora, esta não é uma questão a colocar-se. Contudo, com a discussão sobre o consentimento a aquecer na Austrália, após denuncias de abusos sexuais na política (ver texto ao lado), foi isso que propôs Mick Fuller, comissário da polícia de Nova Gales do Sul. Já para as ativistas feministas, a proposta de uma aplicação para registar consentimento é mais uma demonstração de que as políticas publicas são feitas a pensar nos homens, e que autoridades não sabem como enfrentar abusos contra mulheres.

«Podes ter um filho ou irmão e achar que isto é demasiado desafiante, mas esta app protege toda a gente», disse Fuller, à Nine Network, explicando que a possibilidade de provar consentimento explícito facilitaria o decorrer dos casos em tribunal.

O chefe da polícia de Nova Gales do Sul, o estado onde fica Sydney comparou a app aos QR Codes que se tornaram cada vez mais comuns em tempo de pandemia. «Neste momento, não podes entrar numa loja sem passar pelo scanner», lembrou Fueller, que apresentou a proposta no jornal britânico Daily Telegraph, propriedade de Rupert Murdoch, o magnata australiano que controla boa parte da imprensa anglo-saxónica. «Há dois anos teríamos dito: ‘Estás louco, não vamos fazer isso’».  

Rapidamente foram apontadas falhas óbvias no plano do chefe da polícia. «O agressor pode simplesmente coagir a vítima a usar a app», tweetou Hayley Foster, diretora dos serviços de apoio a mulheres vítimas de violência em Nova Gales do Sul.

«Violadores podem muito bem ganhar mais proteção com isto que as vítimas», concordou Andrew Dyer, professor de direito na Universidade de Sydney, à ABC. Além de prejudicar vítimas que consentiram em ter relações sexuais, em algum ponto, e depois voltaram atrás. «Entusiasmo ou vontade por algum tipo de contacto sexual não dá a outrem autorização para fazer o que quiser», notou uma jornalista do Guardian Australia, Josephine Tovey.

Outros acusaram a proposta de ser um penso rápido para problemas de fundo, notando que o departamento de Fuller não é exemplo no que toca a levar denuncias de abusos sexuais a sério. Menos de 10% das quase 15 mil denuncias de abusos sexuais em Nova Gales do Sul, no último ano, resultaram em acusações judiciais, admitiu o próprio. 

«Estou perplexa com a atual crença que a tecnologia deve ser uma boa solução em situações em que estamos a lidar com relações de poder, nuance, e a complexidade do comportamento humano», reagiu Annabelle Daniel, diretora da Women’s Comunnity Chelter, uma organização não-governamental, citada pela Reuters. 

Não é a primeira vez que surge o conceito de uma aplicação para registar consentimento. Na Dinamarca, que criminalizou o sexo sem consentimento explicito, um empresa já criou uma app semelhante à imaginada por Fuller –  a adesão foi baixíssima, com menos de 5 mil dowloads, segundo a Sensor Tower.

Face à chuva de críticas, o próprio chefe de polícia de Nova Gales do Sul já voltou atrás com a proposta. «Esta ideia da app pode ter sido a pior ideia que tive em 2021», admitiu. «Mas, na realidade de daqui a cinco anos, talvez não seja».