Morrem cada vez mais jovens no Brasil. País “está a transformar-se em Manaus”, gritam epidemiologistas

Teme-se que o aumento dos casos graves de covid-19 em pessoas jovens seja resultado de uma nova variante. O país “está a transformar-se em Manaus”, gritam epidemiologistas

Que os serviços de cuidados intensivos, um pouco por todo o Brasil, estejam inundados de gente a morrer de covid-19 é uma tragédia que já não é novidade. A novidade é que, entre esses doentes graves, a percentagem de jovens sem fatores de risco é cada vez maior. O mundo inteiro está de olhos virados para o país, tentando perceber se esse aumento drástico é resultado da “variante brasileira”, a preocupante P1, que sabemos ser até 2,2 vezes mais contagiosa e ter maior potencial de contornar as nossas defesas imunitárias, tendo devastado Manaus. Entretanto, o Brasil tornou-se uma caixa de petri para mutações, com o vírus a alastrar descontrolado, tendo sido detetadas dezenas de outras variantes, duas delas potencialmente perigosas, a P2 e a N9.

Para os médicos brasileiros, a sensação é de assombro, face à perda de tantas vidas tão jovens. “Nos dois últimos meses, temos visto cada vez mais pacientes entre 25 e 40 anos, o que assusta, são pacientes da minha idade”, disse Matheus Alves de Lima, que trabalha nos cuidados intensivos em hospitais de campanha em Brasília. “A gente entuba, entuba, e não acaba. Eles chegam precisando de diálise de urgência, às vezes em choque. Tudo isso piora muito seu prognóstico”, lamentou, à BBC. “Às vezes, chegam aos cuidados intensivos só para falecer.”

“A morte para uma pessoa nos seus trinta anos é muito, muito dolorosa”, acrescentou Maria Dolores da Silva, de 42 anos, uma médica intensivista em São Paulo, à CNN. “Eles ainda têm a sua vida inteira à frente deles quando a covid-19 a leva”.

E não se tratam apenas de casos isolados. Há mesmo uma tendência nacional no sentido de cada vez mais casos graves entre os jovens, admitiu Jean Gorinchteyn, responsável pela Saúde no estado de São Paulo. “A pandemia retornou com uma velocidade e uma característica clínica diferentes daquela da primeira onda”, avisou Gorinchteyn, em conferência de imprensa.

Quando esta tendência surgiu, em dezembro, apenas 20% das mortes por covid-19 no Brasil eram de pessoas com entre 30 a 59 anos. Desde então, houve uma aumento de quase 30% nesses números, segundo estimativas da France Press, bem como uma queda nas mortes de pessoas com mais de 60 anos, que passaram de representar 78% do total para 71%.

“Ameaça global” Nem todas as explicações para o aumento das mortes entre jovens passam por uma variante com novas características. O programa de vacinação do Brasil, apesar de relativamente lento, está a avançar – 6,32% dos brasileiros, ou seja, mais de 13 milhões de pessoas, já tinham tomado a primeira dose, esta quinta-feira, segundo dados oficiais, comparado com os 9,16% em Portugal – começando pelos mais velhos, enquanto os jovens continuam sem imunidade.

Além disso, também pode haver questões comportamentais envolvidas, dado que muitos continuam a ter de ir trabalhar, muitas vezes apanhando transportes públicos lotados. E o que não faltaram foram festas ilegais nos últimos tempos, sobretudo no rescaldo do Carnaval.

“São as pessoas que se sentem à vontade para sair porque acham que [se apanharem covid-19] só vão perder paladar e olfato, e acabam perdendo a vida”, alertou Gorinchteyn. Acrescentando que, dado que pacientes mais novos resistem mais tempo nos cuidados intensivos, a taxa de ocupação de camas, de gasto de oxigénio e medicamentos para entubação, pode tornar-se ainda mais preocupante. Isto numa altura em que hospitais de praticamente todos os 26 estados brasileiros já estão a colapsar, com mais de 90 mil novos casos registados esta quarta-feira.

“Os sinais são claros. Hoje, o país está tornar-se em Manaus”, sentenciou Jesem Orellana, epidemiologista da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), à Al Jazeera. Contudo, apesar de ser cedo para verificar se essa transformação será resultado da variante detetada em Manaus, que se tornou dominante no Brasil segundo a Fiocruz, importa estar atento, alertam especialistas.

Caso se comprove que, de facto, a P1 pode causar mais casos graves de covid-19 entre os jovens, “fica em causa a ideia que poderíamos até proteger grupos de maior risco, como os mais velhos, e estarmos mais despreocupados com o resto”, salienta Miguel Castanho, investigador principal do Instituto de Medicina Molecular (IMM), ao i.

Há precedentes históricos para vírus evoluírem forma a afetar os jovens, quando anteriormente tinham como alvo os mais velhos. “O caso mais paradigmático é o da influenza, o vírus da gripe, em 1918, no tempo da gripe espanhola, quando houve duas fases muito distintas. Na segunda fase afetou mais pessoas jovens”, lembra Castanho.

Hoje, suspeitamos que a causa eram as tempestades de citocina, as pequenas proteínas que desencadeiam a nossa resposta imunitária. Em excesso, levam a inflamações nos pulmões, entupindo-os de glóbulos brancos, fluidos e detritos – algo que a covid-19 também pode causar.

Apesar de os coronavírus terem uma taxa de mutação muito inferior à gripe, o problema é que já temos 125 milhões de infeções registadas por todo planeta, com muitas outras por detetar – dando hipóteses de mutação quase infindáveis ao vírus.

Não espanta que todos os dias vejamos cientistas preocupados com novas variantes. Da variante belga, à recombinante – quando alguém é infetado com duas versões diferentes do vírus e os genomas se misturam – britânica, passando pela “dupla mutante” detetada na Índia, esta quinta-feira, que soma duas mutações na proteína spike, a peça chave que permite ao vírus penetrar em células humanas.

No meio de todas estas preocupações, ainda só três variantes foram declaradas perigosas. A brasileira (P1), a britânica (B1.1.7) – que se estima representar 70% das infeções em Portugal – e a sul-africana (B.1.351).

Mas o risco está lá. “Os dados têm vindo a sugerir que uma infeção passada com as variantes mais antigas não confere proteção contra as novas variantes brasileira e sul-africana”, alertou Christopher Murray, diretor do Institute for Health Metrics and Evaluation da Universidade de Washington, em entrevista ao i. “E as vacinas que temos parecem funcionar cerca de 30% menos com as novas variantes”.

Aliás, o próprio Senado brasileiro chegou a pediu ajuda para o seu programa de vacinação, numa petição dirigida às Nações Unidas, na quarta-feira, admitindo que a situação no Brasil é uma “ameaça global”.

“Em todo lugar podem surgir variantes do coronavírus. Mas, quando não se tem condições propícias para sua proliferação, elas desaparecem”, disse o virologista José Eduardo Levi, investigador do Instituto de Medicina Tropical da Universidade de São Paulo, à Veja. “Infelizmente, esse não é o caso do Brasil”. Nem sequer o de Portugal – que consegue continuar a bater o Brasil em mortes per capita, apesar do descalabro que vive aquele país.