‘Ó sô ministro, não desapareça’

Soares, para quem Guterres não passava de um ‘frouxo’, não se continha e apelava ao «direito à indignação», instigando a população a manifestar-se, a resistir, a reagir contra o poder absoluto do Governo de Cavaco e suas manifestações de arrogância e prepotência.

Em 1993, durante a presidência aberta na região de Lisboa, Mário Soares levantou-se do lugar no autocarro que haveria de o levar de Vila Franca de Xira a Loures, e em que estava comodamente sentado ao lado de Demétrio Alves (então presidente da Câmara deste último concelho), pediu que lhe abrissem uma janela e gritou para o exterior: «Ó sô guarda, desapareça! E diga ao seu colega que desapareça! Nós não queremos Polícia!».

O Presidente da República não resistiu e, com a impaciência e espontaneidade que lhe eram características, deu uma desanca pública aos ‘batedores’ da GNR que tinham recebido ordens para acompanhar o autocarro com a comitiva presidencial, quando o objetivo daquela iniciativa era precisamente transitar pela N10 nas condições de trânsito caótico em que o faziam diariamente muitos milhares de cidadãos (sem ‘batedores’ nem sirenes a abrir caminho).

As presidências abertas foram a fórmula ‘inventada’ por Mário Soares para marcar a agenda mediática e promover a oposição ao Governo maioritário de Cavaco Silva, face ao que Mário Soares considerava tratar-se de inação ou inconsequência da oposição então liderada por António Guterres.

Soares, para quem Guterres não passava de um ‘frouxo’, não se continha e apelava ao «direito à indignação», instigando a população a manifestar-se, a resistir, a reagir contra o poder absoluto do Governo de Cavaco e suas manifestações de arrogância e prepotência.

E dava o exemplo, desautorizando… as próprias autoridades – em frente a câmaras de televisão, às objetivas dos repórteres fotográficos e aos olhos e ouvidos dos jornalistas. Não resistia. Se aquela iniciativa era para não ter ‘batedores’, que desaparecessem e fossem queixar-se a quem lhes dera tal ordem, para Soares ilegítima, sobretudo se acaso vinda do próprio ministro da Administração Interna.

Foi esta história que logo me veio à memória quando assisti ao episódio que envolveu o ministro do Ambiente, João Pedro Matos Fernandes, na barragem de Odeleite. As imagens da reportagem da SIC mostram o ministro a virar costas e a ‘retirar-se estrategicamente’ para não ser identificado à frente das câmaras de televisão pelos militares da GNR chamados à barragem onde supostamente estaria a acontecer um ajuntamento ilegal, e com ordens para identificarem todos os presentes.

O ‘ajuntamento’ tratava-se, porém, da comitiva ministerial que acompanhava uma visita de Matos Fernandes àquela barragem que abastece de água várias zonas do Algarve.

O ministro, que optou por não ter de sujeitar-se a mostrar o cartão de cidadão aos militares da GNR ao invés de alguns dos seus acompanhantes, haveria de voltar a mostrar-se já depois de os militares terem ido à sua vida, ainda que só após terem levantado auto de identificação a pelo menos uma pessoa que se encontrava no dito ‘ajuntamento’.

«Com todo o respeito, penso que a GNR foi excessivamente diligente, porque eventualmente não terá percebido o que aqui se estava a passar. Esta é uma atividade política, e ela não tem qualquer tipo de condicionamento desde que sejam cumpridas as regras e aqui estão obviamente a ser cumpridas as regras: estamos todos ao ar livre e a fazer discursos ao ar livre debaixo deste magnífico sol», disse o ministro Matos Fernandes à_SIC depois de ‘desbloqueada’ a situação.

Ou seja, em 1993, Mário Soares, por estar rodeado de jornalistas, não resistiu a dar uma desanda nos militares da GNR que cumpriam as ordens de servir de batedores ao autocarro onde seguia o Presidente da República com a sua comitiva e que, obviamente, receberam ordens para fazer aquele serviço. Falava mais alto, para Soares, a defesa da liberdade, dos direitos e das garantias constitucionais e a sua cultura de sempre contra os estados policiais ou securitários.

Em 2021, o ministro do Ambiente, por estar rodeado de jornalistas, pôs-se ao fresco para não ter de mostrar o cartão de cidadão nem sujeitar-se a ser identificado pelos militares da GNR, a quem poderia ter explicado que as instruções que lhes terão dado para identificar os presentes num alegado ajuntamento não faziam sentido, porque se tratava de uma ação política, excecionada pela Constituição e pelo decreto que regulamenta o estado de emergência, ao abrigo do qual ali estavam a cumprir ordens de quem para lá os enviou após denúncia de alguém que ainda deve estar a rebolar de riso.

A verdade é que não é mesmo nada bom para o estado de direito democrático e para a autoridade do Estado que um Presidente da República desautorize em público agentes da autoridade ou das forças de segurança, militares ou militarizadas.

Mas é muito pior que um ministro se iniba de reagir de imediato quando se depara com uma situação em que esses agentes ou militares atuam de forma «excessivamente diligente». Porque demonstra que o Governo que representa tem falta de cultura democrática, falta de respeito pelos direitos, liberdades e garantias constitucionais e falta de solidariedade.

Se se tratava de uma iniciativa política do Governo da República, como não estavam as autoridades policiais locais devidamente informadas? E como, mesmo assim, foram ao local para identificar quem ali presente? E por que razão o ministro não interveio na hora, antes preferindo tecer críticas públicas em momento posterior, dizendo aos jornalistas o que deveria ter dito aos guardas? E por que razão gravou novas e já diferentes declarações à RTP?

Pena que não estivesse lá alguém que lhe tivesse dito: ‘Ó sô ministro, não desapareça’.

Até porque, com todas as polémicas em que está envolvido, não falta quem lhe deseje exatamente o contrário.