Para onde está a caminhar a União Europeia?

Quando a União Europeia conseguiu, com dificuldade e tempo, construir uma solução financeira para acorrer à degradação económica dos estados membros provocada pela pandemia, foi consensual a ideia de que o projeto europeu tinha, de novo, retomado o seu caminho.

Com efeito, a aprovação do Mecanismo de Recuperação e Resiliência, no montante de 672,5 mil milhões de euros, associado a outras ‘facilidades’ até 750 mil milhões de euros, obrigando a quebrar o tabu da não mutualização da dívida pública, traduziu uma afirmação clara e inequívoca de um dever de solidariedade que é o essencial do projeto europeu.

O caminho ficou assim traçado e ninguém duvidou que, a partir de então, a União Europeia tinha ganho o necessário suplemento de alma para ultrapassar o trauma sofrido com as políticas desgarradas e injustas, impostas aos países mais frágeis , na crise das dívidas soberanas que quase comprometeu o euro.

Nem sequer releva em desfavor desta apreciação o facto de se saber ou suspeitar que a disponibilidade dos recursos financeiros, agora aprovados, não seria imediata e, sobretudo, não seria isenta de condicionalidades e escrutínio.

O ‘Mecanismo’ foi concebido para recuperar a economia europeia, mas também, não mesmo importante, para criar condições que permitirão a sua reforma, modernização e competitividade global. Ou seja visa o médio prazo.

Para o curto prazo, foram criados outros instrumentos de apoio (o programa Sure) e, em especial, manteve-se, em moldes reforçados, a intervenção da política monetária do BCE que tem permitido aos estados membros um recurso fácil aos mercados sem constrangimentos e com juros muito favoráveis.

Ultrapassada a barreira, que parecia intransponível, do endividamento comum e solidário, resta esperar que o processo não sofra nenhuma contrariedade política e que os ambicionados recursos comecem a encaminhar-se para os seus destinos, no início do segundo semestre deste ano, não se confirmando algumas análises pessimistas que apontam o início do processo apenas para os primeiros meses de 2022.

Este atraso, se for confirmado, será uma verdadeira desilusão, até porque demonstrará, sem margem para grandes dúvidas, que a burocracia de Bruxelas continua a ser mais forte que a decisão política, mesmo quando esta é amplamente consensualizada.

Portugal preside, durante este semestre, ao Conselho da União Europeia e apesar da partilha de competências que tem de fazer com o Parlamento, com o Presidente do Conselho Europeu e com a Comissão, não pode deixar de se envolver, séria e publicamente, no cumprimento de um calendário razoável.

Mas, se no domínio económico as coisas ainda não estão a embaraçar, até porque há verbas disponíveis do quadro financeiro anterior que podem ser utilizadas pelos estados membros em condições mais flexíveis, já o mesmo não pode ser dito do processo comum de vacinação contra a covid.

A definição de uma política europeia para a compra de vacinas, assim como as regras da sua partilha e utilização, começou por ser, de novo, uma afirmação de solidariedade e de empenho num destino comum, correspondendo, agora no plano da saúde, a um revigoramento de «uma ideia de Europa» como nos ensinou o filósofo europeísta, George Steiner.

Infelizmente a incompetência política da Comissão e, mais uma vez, a burocracia arrasadora de Bruxelas, parece estarem a conduzir esta iniciativa, para um relativo ‘fracasso anunciado’.

A situação, ainda não é irreversível, mas tem de ser rapidamente corrigida, pois doutro modo, corre-se o risco de fazer recuar a confiança no projeto europeu, para, no mínimo, o nível que se sentia antes do consenso sobre os planos de recuperação e resiliência.

Também neste domínio, Portugal tem, no semestre em curso, um papel muito importante que deve exercer, pela pressão e pelo exemplo, junto dos restantes players do projeto europeu, mas de forma a que seja claramente percecionado pela opinião pública.

Afinal, trata-se de duas áreas incontornáveis para a Europa, mas, igualmente, decisivas para a recuperação do nosso país, cuja vulnerabilidade devido à ausência de reformas estruturais é largamente reconhecida.

A opção portuguesa que já se discute em Bruxelas tem de servir os setores mais dinâmicos da sociedade e não pode esgotar-se no clássico setor público servindo apenas para financiar investimentos que devem usar os recursos orçamentais domésticos.

Em suma, a pandemia que parecia estar a tornar-se na motivação essencial para a renovação do projeto europeu à volta da solidariedade, pode transformar-se, a curto prazo, num elemento desagregador da integração europeia, o que associado à reformulação em curso e (ou) previsível, a curto prazo, nos equilíbrios políticos que sustentam alguns governos, não pode deixar de causar preocupação .

Face à incapacidade atual das instituições europeias para superarem estas dificuldades assiste-se, aparentemente, ao ressurgimento de novas pulsões egoístas e a tentativas ( em Portugal também) de usar a pandemia como um simples pretexto para acentuar e, quiçá, perpetuar o poder de minorias instaladas. Tudo isto perante a preocupante anomia da generalidade dos cidadãos europeus.

Por isso é legítimo que, neste tempo atípico para as liberdades individuais nos interroguemos para onde está a caminhar a Europa, nunca esquecendo que, como escreveu Fernando Pessoa, o importante, em cada momento, é «a liberdade, unicamente a liberdade».

E não pode haver projetos de Glória ou de Poder que ponham em causa esse desígnio de Liberdade que é, afinal e no destino, o grande desígnio europeu.