Comissão de inquérito aos incêndios de junho de 2017: uma luta dura que espero que tenha valido a pena

Os trabalhos decorreram sempre inquinados, enviesados pelo preconceito de quem já tinha retirado as conclusões antes de analisar os processos e de quem queria garantir que saíam imunes alguns, fossem ou não culpados, e responsabilizados outros, tivessem ou não culpa.

por Sofia Aureliano

Durante um ano, decorreu no Parlamento a comissão de inquérito sobre os apoios do Estado aos incêndios de junho de 2017, uma das maiores tragédias humanas que em Portugal se viveu nas últimas décadas. Pela dimensão da destruição mas, sobretudo, pela perda de vidas humanas. Meses depois, o cenário dantesco voltou a repetir-se na zona centro, transformando 2017 no annus horribilis em que os fogos mais vidas ceifaram.

A comissão apenas se debruçou sobre os incêndios de junho, porque era esse o seu objeto, mas em todos os momentos sentimos a presença, pesada e triste, de todos aqueles que sofreram perdas nesse ano. Cá fora, estávamos em contexto de pandemia. Dentro de quatro paredes, analisava-se uma tragédia sem precedentes. Foi um ano duro, porque não conseguimos desligar, esquecer o que ouvimos, e continuar o nosso dia-a-dia, inabalados. Muitos relatos mexeram connosco, transportando-nos para o local onde tanta gente perdeu a vida. 

Foi um ano de luta árdua e sofrida, mas que valeu muito a pena. Agora que terminou, permitam-me partilhar uma visão, muito pessoal, de bastidores.

1. Do caos emerge a luz. A tragédia moveu o coração de milhões de portugueses que se mobilizaram para ajudar como podiam: doando bens, fazendo voluntariado no imediato e em centenas de ações que se desenvolveram nos meses seguintes, e fazendo donativos em dinheiro para  ajudar à recuperação dos danos e prejuízos de centenas de vítimas. Essa onda de solidariedade surpreendente, ainda assim impossível de superar a incomensurável dor de quem perdeu tudo ou quase tudo em poucas horas, contribuiu para dar uma resposta rápida às principais necessidades dos mais afetados, desde o primeiro momento.

Passados quase quatro anos, a memória do que foi vivido, hora após hora, no dia 17  de junho de 2017 permanece intacta, firme, inabalável como infelizmente as construções de tijolo, cimento e pedra não conseguiram. Durante um ano, passaram pela comissão de inquérito 32 depoentes, alguns deles que viveram a história na primeira pessoa, outros que fizeram parte da primeira resposta, outros ainda a quem, mais à distância, coube tomar decisões com impacto na vida daquelas populações. Em caso algum, houve indiferença em relação à tragédia e à dimensão do sofrimento vivido.

2. Contra a corrente. Esta comissão de inquérito começou com pé esquerdo. Só existiu porque foi potestativamente imposta pelo PSD, o que significa que nenhum dos outros grupos parlamentares que dela fizeram parte queriam ali estar. Aliás, como o PS e o PCP fizeram questão de assinalar na maioria das reuniões da comissão, estavam ali forçados, contrariados, sem partilhar da convicção de que haveria falhas para apurar, problemas a corrigir e prestação de contas a fazer aos portugueses: às vítimas e aos que tão generosamente responderam com o que podiam. Durante muitas semanas, os dois partidos usaram e abusaram, num esforço que parecia articulado, do argumento de que o PSD estava a usar esta comissão para fazer chicana política, para ingerir em processos judiciais e fazer vingar juízos em sede imprópria, para julgar as vítimas, fazendo delas ainda mais vítimas, alinhando em acusações de más práticas, fraudes ou corrupção. Nada mais longe da verdade!

Os trabalhos decorreram sempre inquinados, enviesados pelo preconceito de quem já tinha retirado as conclusões antes de analisar os processos e de quem queria garantir que saíam imunes alguns, fossem ou não culpados, e responsabilizados outros, tivessem ou não culpa. A missão do PS era fazer a defesa da honra do governo (honra que o PS deduziu, desde o primeiro momento, que precisaria de ser defendida). A missão do PCP era insistir na narrativa de que o PSD pretendia maltratar as vítimas dos incêndios, acusando-as de serem más pessoas – um filme que apenas o PCP via, contra todas as evidências em sentido contrário.

O BE e o CDS-PP, faça-se justiça, não tendo desejado a constituição desta comissão de inquérito, assumiram-na responsavelmente e, no decorrer dos trabalhos, contribuíram para o apuramento da verdade e, sobretudo, para a identificação de caminhos de futuro, situações a melhorar, aperfeiçoamentos que os processos poderão sofrer para que não ocorram desigualdades. Duas posturas construtivas.

3. O Relatório Final. No balanço da comissão, o deputado Relator, Jorge Paulo Oliveira, do PSD, apresentou um texto sóbrio, objetivo e factual. Nem por uma vez foi referida qualquer fraude associada a processos em tramitação judicial. Nem por uma vez foram feitos juízos de valor sobre o comportamento de autarcas, cidadãos, governantes ou governados. Retrataram-se factos, taxas de execução de medidas de política pública, números objetivos. Identificaram-se falhas e retiraram-se conclusões. E, acima de tudo, deixaram-se linhas de orientação para o futuro.

O relatório acabou por fazer história e conseguir o improvável: foi aprovado, com a abstenção do PS e do PCP. Que, mesmo querendo muito, não puderam votar contra. Não havia como negar o óbvio, o indiscutível, o irrefutável.

Houve falhas do Estado. Houve falhas do Estado na gestão do dinheiro dos portugueses. Houve desigualdades no apoio às vítimas, quer ao nível da agricultura, quer ao nível das habitações: o local onde se reside não pode determinar o grau de apoio que alguém pode ter, quando é afetado da mesma forma, pelo mesmo fogo. Quer se trate de habitações ou de pedaços de terra para agricultura de subsistência.

4. A conquista. A necessidade de envolvimento financeiro do Estado no processo de reconstrução das segundas habitações foi a grande conquista desta comissão de inquérito. Porque não falamos de grandes vivendas onde pessoas abastadas passam dias de férias. Nem de propriedades de grandes latifundiários.

O que as segundas habitações representam neste território não é o mesmo que representam no litoral norte ou no sudoeste algarvio. Representam a não desertificação do território, o fim das aldeias fantasma e o incentivo ao desenvolvimento económico, tão escasso, nesta região.

Em tempos em que está na moda falar em coesão territorial e até se cria um ministério para esta pasta, seria um contrassenso ignorar a importância das segundas habitações para a dinamização da região e o seu contributo indelével para a sua sustentabilidade e autonomia financeiras. 

A recomendação está no papel. Aprovada no Parlamento. Agora faça-se a verdadeira homenagem às vítimas: devolva-se-lhes o que foi roubado pelo fogo e assim talvez lhes seja possível desfrutar genuinamente de um passeio à beira lago.