O jornalismo no ‘fio da navalha’…

A boa posição de Portugal no ranking dos Repórteres sem Fronteiras contrasta com a perseguição feita pela PSP a jornalistas, a mando de duas magistradas do Ministério Público…

Se olharmos para o ranking da liberdade de imprensa, elaborado pela organização internacional Repórteres sem Fronteiras (RSF), verificamos que Portugal fecha o top ten em 2020, entre 180 países avaliados, tendo melhorado duas posições desde o ano anterior. É uma classificação confortável, numa lista liderada pela Noruega, onde a vizinha Espanha aparece em 29.º lugar e a Coreia do Norte em último, um exemplo prático das ‘amplas liberdades’ em que se reconhece o PCP.

Este quadro, deveras positivo, contrasta, no entanto, com a controversa perseguição feita a jornalistas pela PSP, a mando de duas magistradas do Ministério Público, com devassa de fontes protegidas pelo sigilo profissional e mesmo de contas bancárias de um dos visados, sem cobertura do mandato de um juiz.

A PGR ainda abriu um inquérito para averiguar a atuação das duas magistradas, que acabou rapidamente arquivado pelo Conselho Superior do Ministério Público, ao qual preside Lucília Gago, não obstante as críticas explícitas do instrutor do processo.

Este episódio inédito, serviu, contudo, para unir os media à volta dos dois jornalistas espiados, reprovando o procedimento das magistradas, numa declaração assinada pelos diretores dos principais meios de comunicação, algo também inédito.

O Sindicato dos Jornalistas prometeu levar o assunto até «outras instâncias, em defesa da liberdade de imprensa», considerando-o «um precedente grave – para jornalistas e cidadãos» –, e que é na realidade.

Talvez a questão ganhe outra notoriedade se o próximo ranking dos RSF vier a refletir, negativamente, o incidente, que mereceu uma capa da revista Sábado, interpretando-o como «Atentado ao Estado de Direito». Até lá, veremos as cenas dos próximos capítulos…

É oportuno evocar esta história nada edificante, até por coincidir com o sobressalto instalado na TDM de Macau, devido à nova diretiva que impõe aos jornalistas a obediência a regras ‘patrióticas’ de ‘amor à China’, o que já motivou a demissão de vários profissionais portugueses, confrontados com o volte-face na politica editorial da estação, estranho aos pressupostos da Lei Básica do território, em vigor até 2049, e que, como recordou o ministro Augusto Santos Silva, «é muito clara na garantia da liberdade de imprensa».

Claro que uma coisa é o que pensa o chefe da diplomacia portuguesa e outra, bem diferente, é o entendimento do chefe do Governo de Macau, Ho Iat Seng, que reagiu com enorme candura, negando que o território esteja a impor restrições à liberdade de imprensa, pois acredita que os ‘media’ são ‘patrióticos’ e ‘amam’ a região administrativa especial chinesa…

Para bom entendedor, meias palavras (‘amorosas’…) bastam na filigrana do discurso oficial, alinhando Macau com a lei de segurança nacional imposta em Hong-Kong, para acabar com qualquer veleidade democrática, intolerável para o regime de Pequim, fazendo ‘tábua rasa’ da Lei Básica, em vigor desde 1997, quando o Reino Unido devolveu à China a soberania no território.

A ‘réplica’ sentida em Macau do ‘sismo’ de Hong-Kong, não deixa margem para grandes dúvidas sobre o destino das liberdades acordadas no quadro da transferência para o domínio chinês.

Afinal, é bom lembrar que a China ocupa um pouco invejável 177.º lugar no índice da liberdade de Imprensa global, elaborado pelos RSF.

A pandemia tem servido de biombo a outros atentados contra a liberdade de imprensa, conforme reconheceu António Guterres, para quem as «restrições temporárias à liberdade de movimento, essenciais para superar a covid-19 […] não devem ser utilizadas como uma desculpa para reprimir a capacidade de os jornalistas fazerem o seu trabalho». Disse-o a propósito do Dia Mundial da Liberdade de Imprensa, lançado pela ONU em 1993 e cuja celebração se aproxima.

Sem dúvida que 2020 foi um ano perigoso para a liberdade de imprensa, transformando o jornalismo numa profissão de risco em várias partes do mundo. A criminalização dos jornalistas, sob os mais variados pretextos, tem feito uma razia.

Segundo o Comité para a Proteção dos Jornalistas, cerca de 250 profissionais em todo o mundo estão detidos. Pior: no ano passado foram assassinados 50 jornalistas, com a particularidade, segundo o relatório dos RSF, de sete em cada dez terem sido vítimas em países em paz e não em zonas de guerra.

O relatório anual da Federação Internacional de Jornalistas (FIJ) confirma a lista negra, com o México a liderá-la pela quarta vez em cinco anos.

Perante este quadro, e mau grado as restrições, Portugal até pode parecer um oásis, propício a um ‘encolher de ombros’ na atuação das procuradoras em relação aos jornalistas. Mas nem a Justiça pode conduzir ‘sem travões’ nem o jornalismo ficar sujeito a dobrar a cerviz e a resistir no ‘fio da navalha’…