A política-travão

A questão que Marcelo deixa no ar na sua mensagem desta semana é só uma: os tempos de crise que vivemos são consentâneos com o plano que António Costa tinha no início da ‘geringonça’?

O país acordou por estes dias para um arrufo (?) entre o Presidente da República e o primeiro-ministro. Será só isso?
António Costa alegou a inconstitucionalidade de leis do Parlamento (aprovadas por todos os partidos contra o Governo e o PS) e apelou a que Marcelo as não promulgasse (com apelo ao princípio de que o Parlamento não pode no ano em curso agravar despesa orçamental). Aquelas leis, que preveem o reforço de medidas sociais em tempos de pandemia, determinam, segundo o Governo, um impacto orçamental muito elevado. 

Marcelo Rebelo de Sousa não só não foi ao encontro do Governo, como aproveitou a circunstância para dar um puxão de orelhas ao inquilino de S. Bento. O Presidente chama a atenção para o perigo de «situações extremas de confronto entre Governo minoritário e todos os demais partidos com assento parlamentar». Essas situações aconselham «concertação de posições e não afrontamento», «sobretudo numa crise tão grave, a exigir espírito de diálogo» «e muito menos um clima de crise política, a todos os títulos indesejável». 

O apelo da Presidência é claro: António Costa não deve ser teimoso nem prepotente e, como Governo minoritário e ainda para mais numa altura destas, não deve afrontar a maioria, antes procurar diálogo e compromisso. É um recado político forte, que pode vir a marcar o final deste mandato de António Costa. E por isso mesmo vale a pena tentar perceber o que está aqui em causa.

Tudo começou com António Costa a ser o primeiro líder de Governo que saiu de um resultado perdedor nas eleições. Perdeu as eleições para a PaF de Passos Coelho e Paulo Portas, mas alcançou um acordo com outros partidos que lhe asseguraram uma maioria parlamentar. E foi então que se disse, que era a vitória do parlamentarismo, que o elogio supremo da democracia era respeitar a vontade dos representantes soberanos do país, ali na Casa da Soberania popular.

Esta história depois não evoluiu sempre de modo linear: fomos tendo algumas crises, mais ou menos graves, sempre que o Parlamento tirou o tapete ao Governo. Foi assim, por exemplo, que um acordo de concertação social caiu (e passou a exigir-se a assinatura do primeiro-ministro em acordos futuros), em 2017. Já antes tinha sido com a demissão do presidente da Caixa Geral de Depósitos, cujas condições para a sua contratação o Governo não conseguiu garantir no hemiciclo. Voltou a ser sempre que medidas pontuais orçamentais escaparam à vontade do Governo.

Mas, por outro lado, o Governo conseguiu travar a crise dos professores virando o tabuleiro a seu favor e comprometendo a afirmação eleitoral do PSD e do CDS, nas eleições que viriam a perder. Um Governo minoritário é sempre vulnerável às maiorias que em cada momento é capaz de construir ou de travar. A única forma de conduzir o seu processo de Governo é pela política. A questão que Marcelo deixa no ar na sua mensagem desta semana é só uma: os tempos de crise que vivemos são consentâneos com o plano que António Costa tinha no início da ‘geringonça’?

Uma crise como estas lança interrogações muito grandes e exige pulso, leme e determinação. Medidas difíceis, certamente impopulares, capacidade reformadora. Como poderá Portugal vingar sem um rumo quanto à TAP (onde já pôs ou vai pôr 1.7 mil milhões de euros), no setor bancário e em particular no Novo Banco (onde já pôs ou vai pôr para cima de 9 mil milhões de euros), medidas sociais para fazer face ao flagelo da covid, medidas orçamentais para fazer face ao crescimento da despesa social, gestão da bazuca (que pode chegar a 16,7 mil milhões de euros), etc., etc.?

No primeiro mandato o Governo vendeu a narrativa do fim da austeridade e encontrou sempre alguém do outro lado da ponte. No entanto, essa narrativa também trouxe os seus parceiros à exiguidade eleitoral. Não estando comprometidos, querem agora sacudir a água do capote à primeira oportunidade.

E a conclusão a tirar é simples: não há Constituição que valha um governo sem condições de governo. Ou as encontra na Política ou não será o Direito a garanti-las. Marcelo Rebelo de Sousa foi claro. O Governo terá de saber tirar as suas ilações.