Myanmar. No meio do massacre, receio de uma guerra civil

Com centenas de jovens fugidos para território de minorias, à procura de abrigo ou treino militar, fala-se de ripostar contra o exército birmanês.

As ruas de Rangum estão pintadas de vermelho. Tanto pelo sangue das mais de 570 pessoas abatidas pelos militares birmaneses, desde que estes tomaram o poder em fevereiro, segundo a Associação Pelos Prisioneiros Políticos, como pela tinta que ativistas pró-democracia espalharam pela cidade, esta terça-feira. O objetivo foi relembrar o general Min Aung Hlaing, líder da junta, do seu extenso rol de crimes, além de pedir aos soldados rasos que “não matem pessoas por um salário tão escasso que não dá para comprar comida de cão”, como se lia numa mensagem rabiscada nas paredes, citada pela Reuters.

No entanto, para cada vez mais ativistas pró-democracia, os balões com tinta vermelha, cânticos e protestos pacíficos, com três dedos estendidos no ar, referência à triologia Hunger Games, já não parecem suficientes para enfrentar gás lacrimogéneo, cacetetes, balas de borracha ou fogo real dos militares. Cada vez mais jovens citadinos partem para as regiões fronteiriças, juntando-se a milícias e grupos independentistas étnicos, entrincheirados em florestas montanhosas, para receber treino militar. 

“O mundo mudou. Vejo que as pessoas nas cidades não desistem. E vejo que Min Aung Hlaing não desiste. Creio que há a possibilidade de que uma guerra civil possa acontecer”, avisou o general Yawd Serk, líder do Exército do Estado Xã, um dos maiores grupos separatistas, em entrevista à CNN, na sua base fortificada na Tailândia, na fronteira com o leste do Myanmar. 

O general sabe do que fala. Na prática, o país está numa guerra civil intermitente desde a independência, em 1948, entre o exército birmanês, ou Tatmadaw, que representa os bama, a etnia maioritária, e uma dezena de exércitos de minorias, dos xãs, karen, chin ou cachin, que exigem independência ou a criação de um Estado federal.

Centenas de ativistas pró-democracia já escaparam para redutos destes exércitos, segundo o Irrawaddy, um jornal independente birmanês, tendo o Exército do Estado Xã prometido abrigar os que se refugiarem no seu território, enquanto grupos de insurgentes karem enviaram tropas para proteger manifestantes no seu estado.

Caso a junta militar “continue a disparar e a matar pessoas, isso significa que eles se transformaram em terroristas”, acusou o general Yawd Serk. “Não ficaremos parados. Vamos encontrar todos os meios para proteger as pessoas”. 

 

Velho inimigos, novos amigos “De certa forma, isto não é exatamente novo”, considera o jornalista David Eimer, autor do livro A Savage Dreamland: Journeys in Burma (Bloomsbury, 2019), à conversa com o i.

“Em 1998, quando houve muita gente morta pelos militares nas ruas, em manifestações, muitos jovens estudantes partiram e foram viver para as zonas de minorias étnicas, tentando ganhar treino militar”, relembra Eimer.

“As regiões das minorias são as únicas zonas do país em que o exército não existe. Mesmo antes disto, qualquer pessoa que queira fugir, ou evitar os militares, vai para lá e está bem, não há lei”, explica o jornalista. “Entre os meus amigos birmaneses muitos estão a sair das grandes cidades, não é propriamente seguro neste momento”. 

Contudo, “é interessante que tenha sido preciso este golpe de Estado para a maioria dos birmaneses perceber que as minorias étnicas são, de facto, suas amigas”, comenta Eimer. “Porque elas estão a lutar contra o exército birmanês há 70 anos”.

De facto, nas últimas décadas, o próprio movimento pró-democracia birmanês sempre mostrou um certo cunho supremacista bamar – veja-se a posição da sua líder, a Aung San Suu Kyi, que defendeu os militares contra a acusação de genocídio dos royhingia – e mesmo quando foi para o Governo, após as eleições de 2015, sempre recusou quaisquer exigências das minorias.

Agora, o Governo civil birmanês no exílio, do partido de Suu Kyi, a Liga Nacional para a Democracia, até promete o impensável. “Para formar uma democracia federal, com todos os irmãos étnicos que sofreram todo o tipo de opressões da ditadura durante décadas, esta revolução é uma oportunidade para juntarmos os nossos esforços”, chegou a apelar o líder do Governo civil no exílio, Mahn Win Khaing Than, no Facebook. 

Contudo, apesar desta aproximação, a possibilidade de militantes pró-democracia conseguirem aliar-se com exércitos étnicos, de maneira que ameace militarmente o Tatmadaw é longínqua, avalia Eimer – senão impossível. “Os exércitos de minorias étnicas podem travar uma guerra de guerrilha, mas não conseguiam enfrentar um exército que tem mais de milhão de pessoas. Ninguém poderia, nem que os chineses invadissem, eles têm demasiadas pessoas”. 

A questão é que, com sangue inocente a correr nas ruas, parece pouco impossível que o Tatmadaw consiga ocultar os seus massacres e seguir em frente, como fez tantas vezes. E parece improvável que, após a a carnificina, o movimento pró-democracia esteja com grande vontade de soluções de compromisso. 

“A diferença desta vez é que a situação está a ser noticiada, tens imensos cidadãos-jornalistas a filmar tudo”, afirma Eimer. “Esta junta ainda pensa que estamos no ano de 1998, não percebem que as pessoas têm telemóveis, internet”.