Mariana Van Zeller. “Nenhuma vida vale uma história e vice-versa”

Aos 44 anos, é autora do primeiro programa da National Geographic com assinatura portuguesa. Tráfico de drogas, de armas, de animais e até exploração sexual são alguns dos temas que Mariana Van Zeller explora na série Na Rota do Tráfico, que começou  a ser emitida, pela National Geographic, no passado dia 13 de fevereiro.

Nasceu e cresceu em Cascais e partiu para os EUA aos 25 anos, depois de duas tentativas goradas de admissão à Columbia Journalism School, em Nova Iorque, onde tirou um mestrado e consolidou a paixão pelo jornalismo de investigação. Aos 44 anos, casada com o jornalista norte-americano Darren Foster e mãe do pequeno Vasco, de dez anos, já ganhou o Webby People’s Voice Award for News & Politics, com Obama’s Army, sobre a máquina eleitoral de Obama e o seu exército de jovens voluntários. Seguiram-se o Peabody Award 2010, Television Academy Honor e Prism Award para Melhor Documentário, com The OxyContin Express, sobre o tráfico e adição de medicamentos de prescrição médica e o Livingston Award for Young Journalists 2011, com o documentário Rape on the Reservation, sobre a crescente violência sexual nas reservas de índios norte-americanas. No passado dia 13 de fevereiro, lançou Na Rota do Tráfico, o primeiro programa da National Geographic criado por uma portuguesa. São oito episódios através dos quais a jornalista dá a conhecer o tráfico de animais, armas, cocaína, fentanil, esteroides, a falsificação de dinheiro, as burlas e a exploração sexual. Para Mariana Van Zeller, este trabalho corresponde à realização do seu maior sonho.

Percebeu que queria ser jornalista por volta dos 12 anos, ao ver, diariamente, o Jornal da Noite. Esta paixão foi motivada pela sua vontade de conhecer e explorar o mundo? Exatamente. Queria ser pivô porque era a pessoa que via como a cara do jornalismo. Na altura, não tinha acesso a documentários ou a trabalhos de jornalismo de investigação. Em minha casa, era obrigatório vermos a telenovela e o telejornal juntos. Quando via os pivôs a falarem sobre o mundo inteiro, achava que eram as pessoas mais inteligentes porque memorizavam tantos factos e números. Só mais tarde vim a descobrir que estavam a ler o teleponto!

Nessa época, existia alguma figura do universo jornalístico que admirava particularmente? Lembro-me de ver as reportagens, em zonas de guerra, da Cândida Pinto. Via-a no terreno e entendia que era uma mulher a fazer um trabalho considerado bastante masculino e, por isso, tinha uma grande admiração por ela. Foi um símbolo de quem queria ser no futuro. Outra pessoa que me marcou foi a Christiane Amanpour: recordo-me de ter 15, 16 anos, e de ver a cobertura dela da primeira guerra do Iraque. Uma mulher, de origem iraniana, não nasceu nos EUA e chegou à CNN.

Tirou a licenciatura em Relações Internacionais. Enveredou por esse caminho para adquirir bases sólidas sobre temáticas como o direito, a economia ou a política e, assim, estar mais preparada para dominá-las no terreno enquanto jornalista? Entrei na Universidade Lusíada e já tinha estagiado n’O Independente, a servir cafés e a escrever obituários. Quis ter uma ideia daquilo que era o jornalismo. Acho que a escolha desta licenciatura baseou-se no facto de que achei que, mais importante do que um curso de Comunicação Social, seria ter um conhecimento vasto do mundo. Pensei que este percurso poderia preparar-me melhor.

Depois de tudo aquilo que viveu, teria tomado a mesma decisão? Se pudesse voltar ao passado, teria tirado Direito. Hoje em dia, a preparar vários trabalhos, sinto que queria ter mais conhecimentos dessa área, por exemplo, para saber aquilo que posso ou não dizer e compreender quais são os limites em termos legais. Mas, por exemplo, vim do Gana há uma semana e lembro-me de ter estudado as suas raízes.

No ano em que terminou o curso, candidatou-se ao mestrado da Columbia University, mas não entrou. No ano seguinte, também não. À terceira tentativa, decidiu ir a Nova Iorque e bater à porta do reitor. Como é que teve essa audácia? Na primeira vez, não entrei. Na segunda, fui posta numa lista de espera e tive esperança de que tudo corresse bem, mas não correu. Fiquei profundamente deprimida durante uns dias. Decidi que no terceiro ano viajaria até Nova Iorque. Na papelada das admissões, desencorajavam os estudantes internacionais a ir lá presencialmente porque existem milhares de pessoas a candidatarem-se. Mas eu fui e comecei por falar com a professora Anne Nelson, e viria a ter aulas com ela, e perguntei-lhe se poderia falar com o reitor. Ele tinha trabalhado enquanto consultor numa empresa portuguesa e gostava bastante da comida e dos vinhos portugueses. Sentámo-nos durante uma hora a conversar e fui aceite.

Foi apoiada pela sua família? Sim, sempre. O curso não é barato, mas consegui bolsas de estudo ao nível do mérito académico.

Antes de se mudar para os EUA, estagiou na SIC durante alguns meses e fez um programa sobre viagens na SIC Notícias durante cerca de um ano. Devido a estas experiências, entendeu que o seu futuro não passaria por Portugal ou a necessidade de ir para o terreno e não se circunscrever ao hotel pesou mais? Quando o Nuno Santos veio ter comigo e fez-me a proposta de viajar em redor do mundo, fiquei muito entusiasmada. A primeira viagem foi às Maldivas e lembro-me perfeitamente de que, no primeiro dia, estava numa das praias paradisíacas e entrevistei um casal que estava na lua de mel. Perguntei-lhes “Is this your idea of paradise” (É esta a vossa ideia de paraíso)?. E, nesse mesmo momento, entendi que não era aquilo que queria fazer. Aquele tipo de jornalismo deixava-me muito vazia. Fui também ao Sri Lanka e aos Açores e, posteriormente, entrei na Columbia [University].

O 11 de setembro aconteceu quando estava nos EUA há um mês. A SIC Notícias contactou-a e explicou que era a única jornalista que conheciam na cidade e que precisavam de alguém que fizesse um direto para o Jornal da Noite. Como é que assumiu essa responsabilidade e que peso teve na sua identidade pessoal e profissional? Estava a dormir porque tinha estado a trabalhar até tarde num artigo para entregar na universidade. Pelas 9h, comecei a receber telefonemas. Sei que estava a falar com a minha mãe – que chorava e implorava que ficasse em casa e pôs a minha irmã e o namorado dela a falarem comigo para me persuadirem a não sair à rua – e a SIC ao mesmo tempo – a dar-me a morada para onde teria de me dirigir -, com o telemóvel e o telefone fixo nas mãos. Já sabia que o meu sonho era fazer reportagem e, principalmente, num momento que mudaria o mundo, não podia ficar parada. Então, lá fui eu, para Manhattan e vi-me rodeada dos jornalistas que mais admiro.

Quando saiu à rua e entendeu que inúmeras pessoas procuravam os familiares, sentiu que, pela primeira vez, poderia fazer a diferença no percurso de vários seres humanos e, assim, decidiu que o seu futuro passaria por isso? Fiz o meu primeiro direto, mas estava super nervosa e achei que não conseguiria fazer. De seguida, recebi telefonemas de pessoas a darem-me os parabéns. Estava num momento de euforia total e, nas ruas de Nova Iorque, vi as pessoas à procura dos entes queridos. E, aí, decidi que queria fazer um jornalismo mais aprofundado em que contextualizaria melhor os acontecimentos e procuraria o porquê dos mesmos. 

Na universidade, ganhou o prémio de melhor documentário do ano, dando a conhecer a história de quatro crianças que foram sozinhas para os EUA procurar asilo e que acabaram em centros de detenção. Como é que foi o processo de produção deste documentário? Cada estudante da aula de Documentário podia escolher um tema e apresentá-lo. Foram escolhidos apenas seis temas para serem produzidos. Juntei-me a duas estudantes, tivemos ajuda dos professores, e foi incrível. Senti que a minha vocação passava por fazer documentários. Fiz a edição desse trabalho com uma das minhas duas colegas e foram noites sem dormir a editar de forma linear, o processo não era digital como hoje. Devido ao 11 de setembro, havia mais crianças a virem para os EUA sem papéis.

No final do mestrado, estagiou numa produtora de documentários, em Londres, durante um ano… Por ter conquistado o prémio de melhor documentário, fui convidada para estagiar na Insight News Television. Podia dar ideias de histórias que queria explorar e, se alguma fosse comprada, poderia ir para o terreno. Após um ou dois meses, uma das minhas histórias foi aceite e fui com o dono da produtora fazer uma reportagem à Eslovénia. Esse dinheiro ajudou-me a viver na cidade até mudar-me para a Síria.

Tal aconteceu aquando do início da Guerra do Iraque. Quis aprender árabe e iniciar a sua carreira enquanto freelancer. Como é que viveu os primeiros tempos num país totalmente distinto? Foi um dos momentos, na minha vida, em que senti mais que estava no sítio certo. É um país completamente diferente. Nunca tinha viajado para o Médio Oriente, mas não me senti desconfortável. Havia vários jornalistas estrangeiros a estudarem árabe em Damasco e vivi com alguns numa casa. Foi espetacular. Fui aceite na universidade para estudar a língua, mas passei grande parte do meu tempo em festas. Numa delas, conheci um amigo sírio que vinha de uma terrinha na fronteira entre a Síria e o Iraque. Ele contou-me que muitos amigos de infância dele iam para o Iraque lutar contra os americanos. Os chamados muhajidins. Comecei a entender esta insurreição que não era noticiada, até porque se dizia que o conflito tinha terminado e que estava tudo a correr bem, mas essa informação não correspondia à verdade.

Quando o Darren Foster, seu atual marido, então namorado, foi visitá-la, explicou-lhe a história em que estava a trabalhar e, a partir desse momento, começaram a trabalhar juntos. Ele era jornalista de imprensa, mas decidimos que íamos contar a história que o Tarrak me tinha narrado. O Darren para um órgão de informação escrito que quisesse comprar o trabalho e eu para televisão. Lá fui eu para a fronteira com a Jordânia, onde havia lojas tax free (livres de impostos), comprei tapetes sírios e enviei-os à minha mãe, para que ela os vendesse às amigas nos lanches que fazia em casa. Foi deste modo que consegui comprar uma câmera pequenina, como as dos turistas, por 500 ou 600 dólares.

Venderam o documentário ao Channel 4, produziram conteúdos igualmente para a CBS e para a PBS e, desde aí, formam uma dupla… Contactei a Insight News Television e falaram com o Channel 4, que disse que tinha de haver um correspondente. Eu achei que o Darren seria a pessoa ideal, por se tratar da língua materna dele, mas ele disse-me “Nem pensar!”. Lá fui eu para a frente da câmera. Passei o tempo todo a tentar ser a Christiane Amanpour e parecia um robô a tentar imitar alguém.

Contornaram as adversidades e levaram o projeto a bom porto. Conseguimos fazer a reportagem, passar tempo com os rapazes sírios, e o embaixador sírio na Grã-Bretanha disse “This young blonde girl has no idea of what she’s talking about” (Esta rapariguinha loira não faz ideia daquilo que está a falar). Para mim, foi uma espécie de badge of honor (medalha de honra). Foi uma maneira de saber que não gostavam daquilo que estávamos a descobrir. Creio que recebemos 5000 dólares, pensei que estávamos ricos, e, com esse dinheiro, decidimos fazer a edição da reportagem em Londres e percebemos que tínhamos futuro na área. Não podíamos ir para a Síria, éramos personas non gratas lá, e fomos para o Brasil. É um país enorme, super rico em termos de histórias, e eu falo português.

Em que temática apostaram inicialmente? O primeiro grande documentário que fizemos foi sobre uma mina de diamantes em que os indígenas tinham torturado e assassinado 30 garimpeiros. Houve uma grande investigação federal e, assim, emitimos o trabalho no programa, da PBS, Frontline. Estávamos na Amazónia quando recebemos um telefonema da Current TV, do Al Gore, a dizer que tinham visto as nossas candidaturas e que queriam que fôssemos a São Francisco para sermos entrevistados. Mudámo-nos para lá e começámos a trabalhar a tempo inteiro no canal.

As histórias às quais ninguém presta atenção são aquelas que a atraem mais? Zig when everyone else is zagging (expressão anglosaxónica que diz respeito a uma mudança brusca de direção) é um dos meus lemas. Ou seja, sei que quando todas as outras pessoas estão focadas em algo, é tempo de fazer uma coisa diferente. Sou conduzida pela minha curiosidade e quando me deparo com temas que ainda não foram explorados, especialmente, nos cantos mais escuros do nosso mundo, sinto-me mais atraída.

Foi isso que aconteceu em 2010, quando arrecadou o Peabody Award, Television Academy Honor e Prism Award para Melhor Documentário, com The OxyContin Express, sobre o tráfico e adição de medicamentos de prescrição médica? O OxyContin Express é um bom exemplo porque baseou-se numa notícia pequenina que vi num jornal gratuito. Falava-se de clínicas da dor que abriam no Sul da Florida porque pessoas do mundo inteiro iam lá e esperavam horas para obter esta nova droga que, no fundo, não era nova, mas ganhava uma nova dimensão. Eu e o Darren descobrimos que havia uma mega indústria ilegal. Passámos quase oito meses a preparar esta reportagem.

Este continua a ser um flagelo nos EUA? É a maior crise de droga na História do país, o abuso de opiáceos.

Em 2010, nasceu o seu filho, Vasco… O meu marido sempre foi obcecado pelo Vasco da Gama, sem ter qualquer ligação a Portugal! Quando era pequenino, na escola, escrevia sobre este explorador! Quando fiquei à espera de bebé, decidimos que o nome do nosso filho seria Vasco por isso e também para homenagear um afilhado com o mesmo nome que morreu.

A mudança do seu pai para os EUA auxiliou-vos? Eu diria que o Vasco tem a sorte de ter três pais. O meu pai é uma pessoa extremamente importante na nossa vida. Hoje em dia, não viajamos juntos e uma das razões pelas quais isso acontece é para que um de nós esteja em casa.

Mostra vontade de seguir as mesmas pisadas dos progenitores? Sim! Diz que quer ser jornalista, estrela de rock e ator! Tal acontece por viver em Los Angeles e ser meu filho e do Darren. Tem uma banda cujo nome é Expired Milk. Canta, toca guitarra e bateria. Há dois anos, cantou uma música com o título I hate school. Escreve as letras todas!

Em 2011, conquistou o Livingston Award for Young Journalists, com o documentário Rape on the Reservation, sobre a crescente violência sexual nas reservas de índios norte-americanas. Quão assustador foi conhecer e divulgar este tema? Uma em cada três mulheres, nestas reservas, são violadas. Havia muito pouco conhecimento sobre o assunto. Ganhámos o prémio para jornalistas com menos de 35 anos e o prémio foi-nos entregue pela Christiane Amanpour. Tive de me beliscar, não pude acreditar! E ela deu-me também os parabéns pelo OxyContin Express e disse: «Sou grande fã do teu trabalho». Gritei em público!

Durante cinco anos, trabalhou na Current TV. Desde 2010, está afiliada à National Geographic. Que experiências a têm marcado mais? Estou a fazer o meu trabalho de sonho na National Geographic: produzo jornalismo de investigação para o mundo inteiro. Escolho as histórias e tenho a sorte de trabalhar com a melhor equipa do mundo.

Fez um pequeno hiato em termos da colaboração com o canal, em 2013, quando se juntou à Fusion. Fui correspondente, em Los Angeles, e chefiei a equipa de investigação. Também colaborei com outros meios, como com o Travel Channel nos anos de 2014 e 2015 ou a Vice NEWS em 2018 e 2019.

Na série Na Rota do Tráfico, explora o funcionamento interno dos mercados negros mais perigosos do submundo, desde a venda de drogas, passando por armas e até pedaços de tigre. É um privilégio enorme. Metade da economia global baseia-se nestes mercados, ou seja, metade da população trabalha no seio dos mesmos. Temos empresas que estudam cada descida e subida dos mercados legais, mas nenhuma estuda os ilegais. Nunca podemos esquecer que estamos a falar da vida de pessoas que nos dão total acesso ao seu dia a dia e, por isso, há que ter um cuidado enorme naquilo que diz respeito à proteção das suas identidades. Especialmente, no âmbito da covid-19, pois tem havido uma explosão enorme destas atividades devido à crise financeira.

Sente medo? Há momentos de stress, mas medo… Já tive, mas, nas filmagens de Na Rota do Tráfico, diria que a curiosidade leva a melhor quando existe espaço para o receio. No entanto, faço isto há mais de 15 anos, estive em situações similares, tenho treino e um plano traçado. Digo tudo isto, mas nunca sei aquilo que pode acontecer. Não vamos para o terreno com qualquer jornalista ou repórter de imagem. Nenhuma vida vale uma história e vice-versa.

Essa mentalidade auxilia-a a criar uma relação próxima com as fontes? Trata-se de empatia e também do respeito que nutro por todos os seres humanos, mesmo quando não concordo com aquilo que fazem.

Coloca-se ao mesmo nível das fontes. Tento pôr-me “in their shoes” (nos seus sapatos), questiono-me acerca daquilo que faria se estivesse na situação dos entrevistados. Apercebo-me de que provavelmente enveredaria pelo mesmo caminho. É claro que converso com pessoas cegas de ambição, mas a maioria teve falta de oportunidades e vive a desigualdade que as leva a uma vida de crime. Isto remete-me para uma expressão que usamos muito, nos EUA, que é “hate the sin, not the sinner”.

Como é que os denominados primeiros encontros acontecem no mundo do tráfico? Nestes underworlds (submundos), tem de se fomentar uma relação de confiança com os entrevistados. É claro que há sempre um primeiro encontro com os entrevistados e não posso, por exemplo, levar câmeras ou microfones porque sei que estas pessoas querem certificar-se de que não sou polícia. Estes “underworld first dates” (primeiros encontros do submundo) acontecem entre comida e conversa. Posteriormente, é possível ter acesso aos grupos, restritos. A_verdade é que eu e a minha equipa preparamo-nos para o máximo de cenários possível.

Na Síria, já foi perseguida pela polícia secreta. Depois de regressar da Amazónia, descobriu que tinha Leishmaniose. Que outras situações-limite já viveu? Uma vez, estava no Sri Lanka e recebi uma chamada do então presidente da Current TV a dizer que a minha colega Laura Ling tinha acabado de ser detida na Coreia do Norte e que tínhamos de voltar aos EUA. Foi um momento horrível para toda a equipa e teve um grande impacto em mim. Mas, nem por um segundo, pensei que talvez não quisesse ser jornalista. Sabia que estava no caminho certo!

Em algum momento sentiu-se menosprezada por ser mulher? Não, mas diria que, por várias vezes, senti a desigualdade entre géneros. Por exemplo, sei que os meus colegas homens, exatamente com a mesma experiência, ganhavam salários mais elevados. Quando fiquei grávida e falei com a Current TV, disseram-me que o estado da Califórnia dava metade do salário e a empresa decidiria se dava a restante quantia.

Fez investigações aquando da sua gravidez?

Viajei pela África inteira e fui mais produtiva do que os meus colegas nessa altura. Por isto é que é importante que existam mais mulheres em posições de liderança. Não queremos que seja um homem a sentir as nossas dores e a compreender-nos, mas sim alguém do nosso género, que passe pelas mesmas vivências. Estive de licença de maternidade somente cerca de seis semanas.

Existe algum episódio, pessoa ou entrevista que a tenha marcado especialmente? Durante as filmagens de Na Rota do Tráfico, houve duas entrevistas que me marcaram muito: uma foi com a Tweety, uma burlona com uma idade compreendida entre os 25 e 30 anos, na Jamaica. Faz chamadas para os EUA e rouba dinheiro aos americanos. Trabalha num resort em que recebe vários turistas e, num ano de trabalho, faz menos dinheiro do que alguns turistas gastam num dia. Certo dia, chegou a casa e percebeu que o avô estava super doente e precisava de um tratamento caro. Aí, ela optou por esta via e salvou-o por causa dessa decisão. Também não esqueço um adolescente do Peru, de 16 anos, que se tornou mochileiro, ao transportar cocaína pela selva peruana, para juntar dinheiro e tirar Medicina Dentária no Ensino Superior. É a lei da sobrevivência. Por detrás destes ilícitos, existem pessoas como nós que têm sonhos, entes queridos e são humanos. É esta a grande mensagem que quero transmitir.

Existe alguma reportagem que se arrependa de não ter feito? Um dos documentários que queríamos fazer era sobre armas nucleares e não podemos fazê-lo por motivos de risco. Fiquei triste porque acho que é um tema bastante interessante e, sabendo que há muitas pessoas que queriam este material, espero poder pegar neste tema um dia.

Já foi ameaçada? Por exemplo, foi noticiado que a sua equipa passou algum tempo com os Proud Boys, classificados pelo FBI como um grupo extremista, e chegou a ser atacada por estar a filmar um dos seus eventos e ser considerada “mainstream media”. Sim. Mais do que no terreno, sou ameaçada quando regresso aos EUA. Por exemplo, na reportagem sobre tráfico de armas, recebi emails e que se continuássemos a aprofundar estes temas, a nossa segurança estaria em risco. Este tema é controverso e difícil de abordar aqui.

Alguma vez desejou voltar a exercer este ofício em Portugal? Tenho uma família, os meus amigos… Vivo aqui há 20 anos. Finalmente, estou a fazer a série dos meus sonhos. Isto não significa que, quando for velhinha, não volte a Portugal. Por enquanto, o trabalho que eu faço só é possível nos EUA.

Qual é a diferença entre fazer jornalismo de investigação nos EUA e em Portugal? Aqui, ainda existe a crença de que o jornalismo de investigação é importante para uma democracia saudável. Há empresas como a National Geographic que estão dispostas a investir neste género. Acredito que os verdadeiros heróis do jornalismo não são os profissionais, como eu, que trabalham tendo recursos à sua disposição, mas sim aqueles que ainda lutam por fazer investigação mesmo sabendo que existe pouco dinheiro e condições escassas para tal. Quando olho para o caso português, acho que cada vez menos existe esta aposta e penso que é negativo para todos nós.