O dia em que o rato pariu uma montanha

Nos mais de oito séculos da História de Portugal, nunca houve dia mais negro para a Justiça portuguesa do que esta sexta-feira.

Nos mais de oito séculos da História de Portugal, nunca houve dia mais negro para a Justiça portuguesa do que esta sexta-feira.

Veja-se pelo prisma que se quiser.

Afinal, o ex-primeiro-ministro que foi detido à chegada ao aeroporto de Lisboa, que esteve preso preventivamente durante meses e que esteve mais uns quantos meses em prisão domiciliária vai a julgamento responder apenas por ter recebido dinheiro de um amigo.

Nada de corrupção – por falta de prova ou prescrição.

Todos os demais arguidos, incluindo o todo-poderoso Ricardo Salgado (com três crimes de abuso de confiança) e Armando Vara (um crime de branqueamento), respiraram também de alívio.

O ex-primeiro-ministro, tudo resumido e concatenado, foi pronunciado apenas por crimes de branqueamento e outros crimes menores (dos 31 que lhe eram imputados, incluindo os de corrupção).

E vai a julgamento responder por factos ilícitos que nada têm a ver com o que levou à sua detenção e à sua prisão preventiva.

A decisão é do juiz do Tribunal Central de Instrução Criminal (TCIC) Ivo Rosa. Que deu um arraso sem precedentes em todo o trabalho de investigação e da acusação realizado pela equipa do Ministério Público liderada por Rosário Teixeira e da Autoridade Tributária, por Paulo Silva.

E ainda aproveitou para mandar extrair certidão e remeter à Procuradoria-Geral da República para abertura do respetivo inquérito-crime à forma como o processo conhecido por Operação Marquês foi distribuído – por sorteio manual e sem a presença de um juiz.

Por este prisma, como foi possível o MP_ter ordenado a detenção de José Sócrates e como foi possível o juiz Carlos Alexandre ter ordenado a sua prisão preventiva?

Por isso, a decisão de Ivo Rosa é a consagração, ela própria, do estado de falência a que chegou a Justiça.

Porque é o descrédito total para o Ministério Público, para o Tribunal Central de Instrução Criminal, para o sistema de distribuição (e alegado sorteio) de processos pelos juízes, pela impunidade generalizada dos políticos e dos poderosos ou de quem beneficia de poder contar com o apoio de advogados que sabem jogar com as leis processuais, criminais e civis e deitar mão de manobras dilatórias para garantir a absolvição dos seus constituintes por prescrições e outros institutos legais afins.

Claro que a decisão de Ivo Rosa é passível de recurso e pode ser revogada por tribunal superior.

Mas, também nesse caso, a Justiça fica irremediavelmente manchada.

Como pôde um juiz singular ter tamanho poder de fazer tábua rasa de todo o trabalho de investigação, do Ministério Público e de outros magistrados judiciais?

O que Ivo Rosa fez no despacho de pronúncia e, sobretudo, de arquivamento, foi um verdadeiro julgamento, muito mais do que uma decisão instrutória.

Ao longo das várias horas da tarde de ontem em que fez a leitura do despacho de pronúncia – ou melhor, de não pronúncia –, Ivo Rosa parecia um daqueles condutores que entra em contramão numa autoestrada e vilipendia todos quantos se cruzam em sentido contrário.

Ou seja, tudo o que o Ministério Público andou a investigar e toda a tese construída pela acusação contra José Sócrates, para Ivo Rosa, não tem sentido nem cabimento ou… prescreveu.

Aos olhos de um leigo, Ivo Rosa, enquanto juiz de instrução, comporta-se como o melhor dos advogados de defesa dos arguidos que caem no TCIC.

Já Carlos Alexandre, ao invés, assume-se como o carrasco que valida e ainda agrava tudo o que lhe chega por via do acusador.

Ora, a Justiça não é conciliável com qualquer destes posicionamentos.

Um juiz não pode ser um branqueador que lava mais branco do que qualquer detergente, nem um justiceiro que se julga com o poder de um xerife do faroeste em que a sua pistola é lei.

Não foi, com toda a certeza, por mera coincidência que o presidente do Supremo Tribunal de Justiça, bem sabendo o que a sua casa gasta, tenha antecipado a leitura desta decisão instrutória com uma declaração pública (à agência Lusa) defendendo a extinção do TCIC.

Muito mais sensata e prudente do que a proposta que o Governo também recentemente veio anunciar de aumentar de dois para quatro os juízes do TCIC.

Seja como for, não chega. Depois do rombo que levou nesta sexta-feira negra – reitera-se, seja qual for o prisma por que se leia o despacho de pronúncia –, é todo o edifício da Justiça portuguesa que tem de ser revisitado e reconstruído.

Mais vale implodir e construir tudo a partir de uma nova base.

Ontem, há quem diga que a montanha pariu um rato.

Mas a verdade é que, para a Justiça e para o Estado de direito democrático em que vivemos, foi o rato que pariu uma enorme montanha.

Quanto a José Sócrates, o ar triunfante com que saiu do Campus da Justiça (e a ‘reunião’ na esplanada com advogados e o primo despronunciado) não corrobora a sua afirmada inocência. Antes pelo contrário. Fica mal a quem acaba de ouvir que, não obstante todos os erros da acusação, vai a julgamento responder por crimes de branqueamento de capitais e só não responderá por corrupção porque os crimes que lhe estavam imputados entretanto prescreveram.