O caldo entornado

O Presidente promulgou três diplomas aprovados pela oposição unida contra a vontade do Governo; por outro lado, ao enviá-los para o Tribunal Constitucional, o Governo decidiu pôr abertamente em causa a idoneidade do Presidente da República.

Não sou dos que defendem que o segundo mandato presidencial é necessariamente diferente do primeiro pelo facto de, não podendo haver reeleição, o Presidente da República estar mais à vontade para agir.

Essa ideia é muito negativa para o Presidente e para o próprio regime, pois pressupõe que o Presidente da República age por motivos de conveniência própria e não por razões de Estado. Por mesquinhos motivos interesseiros e não em função de princípios.

No fundo, aceitar essa ideia é retirar toda a dignidade à função presidencial.

Mas o certo é que, menos de um mês depois da posse de Marcelo Rebelo de Sousa para o segundo mandato, teve lugar o primeiro confronto sério entre ele e António Costa.

E refiro-me, note-se, aos últimos cinco anos.

Neste conflito, há responsabilidades repartidas.

Por um lado, o Presidente promulgou três diplomas aprovados pela oposição unida contra a vontade do Governo; por outro lado, ao enviá-los para o Tribunal Constitucional, o Governo decidiu pôr abertamente em causa a idoneidade do Presidente da República.

Nunca, até hoje, tivera lugar um conflito com tantas implicações.

Ninguém pense que é uma encenação, ou um fait-divers, ou um episódio sem importância.

António Costa já tinha dado sinais claros no passado de que não aceitaria diplomas da Assembleia que desrespeitassem a ‘lei-travão’, ou seja, que aumentassem a despesa pondo em causa o cumprimento do Orçamento.

Recorde-se a sua ameaça de demissão caso fosse aprovada uma lei que obrigava o Estado a pagar aos professores umas supostas quantias em atraso.

Ora, é preciso reconhecer que, então como agora, António Costa está cheio de razão: sendo o Governo quem gere o Orçamento, é inadmissível que a Assembleia vote leis que aumentam a despesa e põem em causa o equilíbrio orçamental.

Julgo que isto é claro.

E nem sequer é novo.

Em 1913, no tempo da 1.ª República, foi aprovada uma lei – exatamente chamada ‘lei-travão’ – que dizia textualmente: «Não podem os membros das duas câmaras (do Parlamento) apresentar quaisquer propostas que envolvam aumento de despesa ou diminuição de receita».

Não foi por acaso que Costa fez o que nunca tinha feito.

Até aqui, sempre que Marcelo Rebelo de Sousa dizia ou fazia alguma coisa que pudesse ser entendida com uma crítica ao Governo, António Costa desvalorizava.

Assobiava para o lado.

Dizia que não era bem assim, que se tratava de um mal-entendido ou de uma intriga, que a relação entre o Governo e o Presidente da República era perfeita.

Agora, não: colocou Marcelo Rebelo de Sousa entre a espada e a parede, pedindo ao Tribunal Constitucional para analisar diplomas que ele promulgara.

Foi como se o acusasse de má-fé ou incompetência ao promulgar aquelas leis.

Mas, sendo tudo isto evidente, por que razão Marcelo Rebelo de Sousa as promulgou?

Aqui, a resposta é facílima: porque Marcelo adora ser popular.

Ao contrário de Cavaco Silva, que às vezes parecia fazer gala em ser impopular, Marcelo quer sair de Belém como um Presidente amado pelo povo.

Esse é hoje o seu grande objetivo.

A impopularidade é o seu maior receio.

Acontece que os apoios sociais são das medidas mais bem recebidas por todos: convêm aos pobres e tranquilizam a consciência dos ricos.

Vamos entrar num período de crise, que vai exigir do Governo medidas muito difíceis.

Por mais que António Costa diga que não haverá austeridade, vamos ter de fazer sacrifícios.

Aliás, muitos já estão a fazê-los – e grandes.

Os impostos vão necessariamente aumentar para fazer face à enorme diminuição de receitas do Estado por causa da quebra da atividade económica.

Ora, se a oposição começar a aprovar a torto e a direito em S. Bento medidas que impliquem aumentos de despesa, e o Presidente alegremente as aprovar, tornar-se-á impossível governar.

Caso estes diplomas sejam aceites pelo Tribunal Constitucional, criar-se-á um perigosíssimo precedente.

Isso explica que António Costa tenha posto os pés à parede.

E, se for preciso, abrirá uma crise política da qual sairá reforçado, pois não existe alternativa ao PS.

A guerra entre Belém e S. Bento veio para ficar.

Marcelo quer ser popular, Costa tem a responsabilidade de governar.

Marcelo só ganhará em apoiar medidas populares, o Governo não terá meios financeiros para as satisfazer.

O caldo está entornado.

 

P.S. – Comentarei na próxima semana a decisão de Ivo Rosa sobre o caso Marquês. Para já, foi uma demonstração de como a Justiça pode mascarar a verdade.