O inocente Sócrates

O juiz Ivo Rosa, conforme era expectável, despronunciou uma série de arguidos da Operação Marquês e, nalguns casos com base jurídica aceitável, mas noutros de juízo duvidoso, branqueou uma panóplia de crimes cuja acusação havia sido construída pelo ministério público.

Há, no entanto, de entre todos os arguidos que na passada sexta-feira aguardavam, ansiosos, por saber se iriam a julgamento, um que não tem quaisquer motivos para se ter ficado a rir e muito menos para atiçar os foguetes que exibiu, os quais se vão revelar extemporâneos:

José Sócrates Carvalho Pinto de Sousa!

Ao contrário da ideia que se procurou passar, certamente idealizada por aquele personagem, mas levada a cabo pela generalidade da imprensa, e logo corroborada nas redes socias, o Engenheiro (não inscrito na Ordem) Pinto de Sousa não saiu absolvido dos crimes que cometeu, antes, sim, foi pronunciado por seis dos que era acusado, sendo que três deles referem-se a branqueamento de capitais, cuja moldura penal é bastante pesada, podendo chegar aos 12 anos de prisão.

Além de mais, e desmistificando a mensagem que de imediato passou à imprensa, é falso que o juiz de instrução lhe tenha oferecido como provado o não cometimento de crimes de corrupção.

Pelo menos em um desses crimes de que vinha acusado, o respeitante ao grupo Lena, Ivo Rosa foi peremptório em considerá-lo culpado, não o tendo pronunciado somente porque o entendeu como prescrito.

Ou seja, Sócrates abandonou o Tribunal acusado de diversos crimes que, irremediavelmente, o reconduzirão à cadeia, além de se ter provado, conforme consta nos autos de pronúncia, de que praticou actos de corrupção enquanto no exercício das funções de primeiro-ministro.

Não tenhamos dúvidas nenhumas de que se Ivo Rosa encontrou provas para acusar o antigo chefe de governo de crimes de branqueamento de capitais, qualquer outro juiz, seja ele quem for, as vai considerar mais do que fundamentadas para o condenar em sede de julgamento.

Não se compreende, assim, tanta euforia pela decisão judicial por parte dos socráticos do costume, a começar pelo próprio que se apelidou a si mesmo de “animal feroz”. Sócrates está mesmo em maus lençóis e qualquer pretensão de regresso à vida política, a que ainda pudesse aspirar, não passa agora de uma simples utopia.

Convém também não esquecer de que é demasiado cedo para se festejar qualquer das deliberações agora tomadas, porque serão objecto de recurso para o Tribunal da Relação, sendo mais do que certo de que a maioria delas não terá aí acolhimento.  

Também a generalidade da imprensa, para variar, tem-se prestado a um péssimo trabalho de jornalismo.

Limita-se a divulgar, com insistência, as partes em que Ivo Rosa procura arrasar o ministério público, mas abstém-se de difundir as acusações de corrupção que este considerou como provadas e com que mimou Pinto de Sousa, para além de deixar cair praticamente no esquecimento os crimes, de extrema gravidade, com que ele vai pronunciado.

Assistiu-se, até, ao ridículo de uma jornalista interrogar Sócrates, quando este se prestou a uma improvisada conferência de imprensa à saída do Tribunal, se ponderava um regresso à política, como se ele tivesse acabado de ser inocentado de todas as acusações que sobre si pairavam.

A criatura, pura e simplesmente, não percebeu patavina do que se passou dentro da sala de audiências!

As reacções ao monólogo de Ivo Rosa, ensaiado durante quase quatro longas horas, não se fizeram esperar, sendo as mais expressivas as que situaram Portugal de luto, pela morte da Justiça, bem como a petição para o afastamento do juiz em causa.

Acontece que a Justiça há muito que está ferida de morte, sendo este triste espectáculo com que fomos obsequiados apenas mais um episódio dos males que nos têm transformado num país terceiro-mundista.

O luto a que a Justiça nos conduz não assenta na ausência de pronúncia dos crimes de corrupção de que o antigo estudante de filosofia em Paris está atolado até ao pescoço, mas sim na tentativa de ilibar quem o corrompeu.

Sócrates, sabemo-lo bem, não passou de um fantoche nas mãos de quem, verdadeiramente, segura as rédeas da governação e tem tomado as decisões que nos têm levado a sucessivos endividamentos, que se estenderão às gerações futuras e que vão mantendo Portugal, teimosamente, na cauda da Europa.

Atente-se à leitura da decisão instrutória de Ivo Rosa e tenha-se em atenção quem foi, de facto, despronunciado dos crimes apontados pelo ministério público.

Deles, apenas Ricardo Salvado será julgado, mas por três crimes menores, relacionados com abuso de confiança.

Dos mais graves, corrupção activa de titular de cargo político (leia-se, Pinto de Sousa), branqueamento de capitais e fraude fiscal está, pelo menos para já, livre de qualquer acusação.

Despronunciados de todos os crimes, sobretudo de corrupção, ficam também, entre outros, a título individual e as empresas que representam, os responsáveis da Portugal Telecom, das Infraestruras de Portugal, do grupo Lena e do empreendimento Vale do Lobo.

O poder económico, mais uma vez, sai incólume de toda a trabalhada em que se envolveu, sobrando o horizonte da prisão apenas para os seus peões de brega, os pavões que se pavoneiam nos corredores do poder mas que, na prática, não passam de criados de quem lhes engrandece, ilicitamente, a conta bancária.

Afastar um juiz, por muito que ele o mereça, não vai resolver os problema da Justiça em Portugal. Outros o substituirão e se prestarão ao mesmo papel.

Enquanto as nossas leis, em particular as de processo criminal, demasiado permissíveis para quem as transgride, não forem reformuladas por completo, o sistema judicial em Portugal mantém-se obsoleto, com as situações mais graves a arrastarem-se anos a fio nos tribunais e os costumeiros tubarões a safarem-se entre os pingos da chuva.

Sócrates, na melhor das hipóteses, somente voltará a pôr os pés dentro de uma prisão daqui a uma década. A juntar aos oito anos desde que se iniciou este processo, façam as contas, como diria um outro engenheiro, por sinal responsável por ter dado palco a este que agora está a contas com a Justiça.

Pedro Ochôa